Uma das preocupações demonstradas por David Sackett alguns anos após a criação do movimento da Medicina Baseada em Evidências (MBE) era de que a ciência médica estava sendo usada por pessoas que não tinham o ideal da verdade científica como horizonte[1]. Eram pessoas que apenas utilizavam as ótimas ferramentas desenvolvidas pela MBE para atingir seus objetivos comerciais – no caso da indústria farmacêutica – ou para satisfazer suas vaidades acadêmicas – no caso de pesquisadores individuais. Uma vez dominadas as ferramentas, seria relativamente fácil “ajustar” o delineamento de um estudo de modo a garantir (ou pelo menos aumentar muito as chances de obter) os resultados desejados.
Há quem entre em êxtase ao apenas ler as palavras “randomizado”, “duplo-cego” ou “controlado com placebo” citadas no resumo de um estudo, e muitas vezes isso é o suficiente para nem mesmo analisar profundamente o estudo em questão, partindo logo para os resultados e chegando à conclusão “apressada” de que “se é randomizado, duplo-cego e controlado com placebo e chegou a esses resultados, então o benefício está comprovado e vamos logo utilizar essa nova joia terapêutica”. Mas a verdade é bem mais complexa, e há quem se aproveite dessas heurísticas para emplacar estudos de má qualidade e vender medicamentos de gosto duvidoso.
Um exemplo recente vem da área bastante explorada (note aqui a ambiguidade do termo!) do tratamento da condição que se convencionou chamar de TDAH, diagnóstico relativamente recente que ainda gera discussões acaloradas e para o qual o número de prescrições de medicamentos tem crescido de maneira avassaladora. Um artigo recente do JAMA[2] enaltece um estudo e a consequente aprovação pelo FDA de uma nova anfetamina usada por via transdérmica em crianças com TDAH. Segundo o estudo, a nova droga seria mais um grande avanço na área. Mas será que o estudo é realmente equilibrado, tem delineamento justo e busca descobrir uma “verdade científica”, ou apenas parece ser um estudo caça-níqueis da própria empresa e que visa aprovar o medicamento a qualquer custo (note aqui outra ambiguidade!)?
Os dois estudos aqui citados[3],[4] sobre os adesivos para administração transdérmica de substâncias psicoestimulantes (dextroanfetamina e metilfenidato) em crianças com TDAH apresentam o mesmo tipo de delineamento que visa maximizar as chances de sucesso do estudo (sucesso para a indústria e não necessariamente para os pacientes!). Ainda que os estudos citem as palavrinhas mágicas “randomizado”, “duplo-cego” e “controlado com placebo”, trata-se de estudos que utilizam um período de 5 semanas de tratamento “aberto” em que todos os pacientes utilizam o medicamento até sua dose ideal. Após isso, os pacientes entram imediatamente no período de duas semanas de crossover no qual dois grupos se intercalam entre o medicamento ativo ou o placebo durante uma semana. Ou seja: nas primeiras 5 semanas todos os pacientes recebem doses ideais do tratamento ativo; na sexta semana metade dos pacientes segue com sua dose ideal e é comparada com o outro grupo de pacientes que subitamente deixa de receber as anfetaminas, evidentemente apresentando alguns sinais de abstinência[5] que podem interferir em sua capacidade de atenção e em outras medidas de desfecho escolhidas; na sétima semana o grupo que estava em abstinência volta a receber o tratamento ativo e é comparado com o grupo que recebeu anfetaminas por 6 semanas seguidas em dose ideal e que passa subitamente a receber placebo, obviamente com grandes chances de apresentar problemas comportamentais pela suspensão súbita da droga. Para piorar a situação – e como fica evidente no registro do estudo da dextroanfetamina no clinicaltrials.gov[6] –, o protocolo exclui claramente os pacientes que “sabidamente não respondem a anfetaminas”, o que certamente só pode contribuir para o “sucesso” do estudo.
É evidente que se poderia fazer um estudo muito mais adequado e justo sobre esses tratamentos a fim de realmente descobrir se eles podem ajudar as pessoas com o problema. Se poderia colocar os pacientes diretamente nos grupos de placebo ou tratamento ativo sem as 5 semanas de tratamento ativo, ou se poderia esperar algumas semanas de intervalo sem o uso de drogas (washout) após o ajuste da dose ideal a fim de que o cérebro dessas pessoas voltasse ao seu estado original. Se poderia ainda não excluir ativamente as pessoas que não respondem a anfetaminas. Enfim, se poderia fazer várias coisas de maneira diferente se o real objetivo fosse descobrir uma verdade científica ou melhorar a vida dessas crianças com TDAH. É igualmente evidente que as agências reguladoras têm profissionais bastante qualificados para a análise desses problemas e com autoridade para exigir novos estudos com delineamentos mais justos por parte dos pesquisadores ou da indústria.
Alguém poderá dizer – e já o prevejo – que estudos assim tão ruins não são a regra, e isso é verdade, pelo menos em parte. O problema é que esses estudos que são assim tão ruins a ponto de serem usados como exemplo de má ciência podem ser os mesmos estudos que são usados pelas agências reguladoras para aprovar os mimos terapêuticos e que em breve alimentarão nossas metanálises, o suprassumo da ciência atual. Parece claro que algo não está funcionando bem em nosso sistema de produção de conhecimento ou de separação entre o joio e o trigo.
Recentemente, os defensores da boa ciência alcançaram uma importante vitória ao reverterem na prática uma decisão estabanada e enviesada do FDA[7] que aprovara um medicamento comprovadamente inútil e perigoso (aducanumab) apesar dos péssimos estudos e da unanimidade dos consultores externos ao FDA em contrariedade àquela aprovação. Logo após a aprovação, a comunidade médico-científica tomou as “ruas” (atualmente, as redes sociais) para denunciar o abuso cometido e alertar a todos sobre a forma como as coisas foram (e costumam) ser feitas naquela agência reguladora que deveria proteger o cidadão. A gritaria da comunidade médico-científica certamente deixou muita gente ciente dos fatos e influenciou a posterior decisão do Medicare de não cobrir o mimo da Biogen fora do ambiente de ensaios clínicos. O aducanumab poderia ser um caso extremo. De modo alternativo, pode ser que existam muitos “aducanumabs” por aí que já deveriam ter sido denunciados por se basearem em evidências esdrúxulas e cuidadosamente construídas por uma ciência fajuta bancada pela indústria.
É evidente que a maioria dos estudos não é assim tão ruim, pois se assim o fosse já estaríamos arrasados. Porém, é bastante provável que a proporção de estudos sofríveis seja bem maior do que o que é percebido pelos profissionais em geral, em especial entre aqueles estudos direta ou indiretamente financiados pela indústria. O que parece claro é que a indústria e alguns pesquisadores já descobriram há muito tempo inúmeras maneiras de driblar a ciência sem burlar abertamente as regras do jogo. Eles usam as palavrinhas mágicas e desenvolvem estudos que se parecem muito com estudos científicos de verdade, mas que pecam por delineamentos tortos e por seus objetivos serem bem menos nobres. O que parece inacreditável é que tais estudos podem ser publicados nos principais periódicos científicos e servir de base para a aprovação de medicamentos que não necessariamente melhoram a vida das pessoas. Criticar essa forma enviesada de realizar estudos é, antes de qualquer coisa, enaltecer a boa Ciência (com letra maiúscula!). Calar diante de tudo isso seria compactuar com essa ameaça triste de destruição progressiva da credibilidade médico-científica. O caminho adiante é nós que escolheremos.

[1] https://pnhp.org/news/howto%20get%20rich.pdf
[2] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2791715
[3] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35020462/
[4] https://link.springer.com/article/10.2165/11207490-000000000-00000
[5] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7138250/
[6] https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT01711021
[7] https://blogs.bmj.com/bmj/2021/11/04/nothing-is-right-about-the-approval-of-aducanumab-and-nothings-new/
Um comentário em “Dos delineamentos cretinos – I”
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