Jean-Luc Godard morreu[1]. Em pleno “setembro amarelo”, o diretor francês optou por tirar a própria vida por meio de um procedimento legalmente aprovado em alguns países chamado de suicídio assistido, no qual a própria pessoa se aplica uma dose letal de algum medicamento[2]. Ao que parece, o expoente da Nouvelle Vague não sofria de nenhuma doença terminal, a não ser que se considere a velhice e muito do que a acompanha como uma “doença”. Segundo as informações disponíveis, ele simplesmente não considerava que sua irreversível condição fosse compatível com uma vida digna. A julgar pelo número de pessoas que optam por esse fim nos países onde isso é permitido, a “nova onda” parece ser o suicídio assistido.
Acostumado a dirigir narrativas e criar histórias, Godard resolveu fazer o mesmo com a própria vida. Foi assim que, cercado pelos familiares mais próximos e longe dos holofotes da mídia, o diretor encenou aquele que seria seu último ato. Para muitos é chocante ver alguém lúcido tomar essa decisão, pois isso nos força a questionar uma daquelas “verdades” que trazemos conosco desde sempre e evitamos questionar: a de que todos devemos lutar pela vida a qualquer custo e sob todas as circunstâncias.
Esta é uma reflexão que muitos de nós não querem fazer. Será que estamos certos em nossa busca por longevidade a qualquer custo? Será mesmo ético prolongar a vida de alguém sem garantir a qualidade dessa vida? Até que ponto a quantidade de vida é mais importante que a qualidade de vida? Em que medida morrer agora é pior do que passar os próximos meses ou anos agonizando sobre uma cama e incapacitado de fazer tudo aquilo de que se gosta? Ou ainda, de que forma o meu conceito de “vida” se compara com aquele de outra pessoa? Como sociedade vivemos sob essa pressão da longevidade. Fazemos de tudo para aumentar nossa quantidade de vida e muitas vezes esquecemos da qualidade dessa vida. Dentro da ciência, isso em parte decorre de nossa mania de medir o resultado de nossas intervenções quantitativamente, pois isso é bem mais fácil e prático do que realizar mensurações qualitativas, sempre tão subjetivas e dependentes das preferências e valores de cada pessoa.
É evidente que avaliar o desejo de morrer de uma pessoa lúcida é bem diferente de avaliá-lo em outra pessoa que sofre de alguma doença mental que talvez interfira na clareza dessa decisão, embora mesmo esta associação automática que fazemos entre as doenças mentais e o suicídio não seja assim tão direta e inquestionável como gostamos de acreditar[3]. Além disso, é preciso lembrar que o conceito de “vida” pode ser bem diferente para duas pessoas distintas. Enquanto uma quer viver nem que seja apenas para seguir respirando, outra pode não querer mais viver se já não puder fazer nada das coisas que lhe dão prazer e que fazem a vida valer a pena. E todas essas diferentes visões devem ser respeitadas.
Ao que parece, Godard partiu tranquilamente de forma indolor e com as pessoas mais queridas em volta de si. Tomou o cuidado de evitar a mídia e a opinião pública com seus moralismos. Godard foi um artista provocador até a sua morte, pois não há nada mais artístico que transgredir regras, questionar valores e estimular reflexões. Para as pessoas mais próximas, foi um gran finale. Para o mundo, terá sido uma saída à francesa.

[1] https://www.theguardian.com/film/2022/sep/13/jean-luc-godard-chose-to-end-life-through-assisted-dying-lawyer-confirms
[2] https://g1.globo.com/saude/noticia/2022/09/14/suicidio-assistido-entenda-procedimento-legalizado-na-suica-pelo-qual-passou-cineasta-jean-luc-godard.ghtml
[3] https://academic.oup.com/jmp/article/47/3/345/6346610?login=false