Ao final da década de 1950, o dramaturgo franco-romeno Eugène Ionesco escreveu uma das peças mais famosas (O rinoceronte) do movimento teatral que ficaria conhecido como “Teatro do absurdo”. Uma das características do movimento é o aspecto caricato como as situações são jogadas na cara do espectador. É que, algumas vezes, não percebemos o absurdo em nosso próprio cotidiano, necessitando que algum artista genial nos faça a gentileza de escancarar o absurdo para que despertemos dessa espécie de torpor.

A história se passa em uma pequena cidade francesa repentinamente invadida por um rinoceronte que causa destruição por onde passa. A cena é testemunhada por dois amigos, os quais começam a debater o fato inusitado. Aos poucos, um desses amigos (o personagem principal, Bérenger, que é um bom e simples homem comum) começa a perceber que não apenas as pessoas da cidade estão se acostumando aos rinocerontes, como estão se transformando lentamente também elas em rinocerontes. Com o passar do tempo, fica evidente que as mudanças não se limitam ao surgimento de chifres e de um corpo disforme, mas também atingem os princípios morais das pessoas, chegando ao ponto em que até mesmo o amigo de Bérenger, que era tido como um “intelectual”, começa a negar seus princípios e sugerir que “o humanismo está morto”. Ao final, nosso personagem principal fica sendo o único homem ainda normal na cidade, pois não consegue virar um rinoceronte mesmo se esforçando para tal, já que seu caráter demasiadamente humano o impede.

É evidente que a peça de Ionesco trata do fascismo eterno e lida com os aspectos políticos e sociais de um mundo que saía de uma guerra sangrenta, visando alertar para as transformações que, por serem lentas e graduais, podem passar despercebidas para muita gente. O autor tenta demonstrar de forma caricata a maneira como as pessoas normais vão se transformando e assumindo o mal como uma nova normalidade, a forma como a brutalidade que inicialmente parecia horrenda passa a ser aceita e deixa de ser questionada ou combatida. Independentemente das óbvias correlações com nosso momento sociopolítico atual, talvez seja importante salientar que essa “banalização do mal” pode não se limitar à esfera política da sociedade, atingindo mesmo aquelas áreas que deveriam ser imunes a comportamentos antiéticos e desumanos, como a própria medicina. Não é que exista fascismo na medicina, mas é que às vezes corremos o risco de banalizar e normalizar o inaceitável.

Os médicos atuam, como regra, de boa fé e sempre em defesa dos melhores interesses de seus pacientes. Porém, até mesmo na medicina podemos adotar um aspecto animalesco sem nem mesmo percebê-lo. Isso acontece, por exemplo, quando agimos de forma desumana e deixamos que pessoas adoeçam por falta de um cuidado mínimo ou permitimos que as pessoas morram afastadas de seus entes queridos. Os médicos também podem assumir formas grotescas quando mercantilizam a saúde ou aceitam algum tipo de incentivo financeiro para aumentar as prescrições de determinados medicamentos para pessoas que talvez nem precisassem deles. Os próprios pesquisadores – muitos deles também médicos – podem adotar a monstruosidade como método ao aceitarem colocar seus nomes em estudos apócrifos ou quando aceitam participar de estudos cujos vieses já estão claros desde o seu início e mancham a reputação da própria ciência. É claro que também nós assumimos um caráter bestial e quase asinino quando permitimos que a medicina seja colonizada por megaempresas que colocam o lucro acima das pessoas ou quando consentimos que parte de nossa ciência esteja distorcida por esta influência da indústria com seus conflitos de interesses, delineamentos duvidosos e dados sigilosos. E, ainda mais importante do que tudo isso, nós todos viramos bestas-humanas terríveis quando assistimos a tudo isso e ficamos quietos por considerar que “é assim mesmo” ou que “este é o novo normal”.

A verdade é que rinocerontes existem há muito tempo, mas sua ameaça de extinção só ocorre na chamada natureza selvagem. Entre nós é possível que estejam aumentando como nunca, como se pode supor pela crescente desumanização da medicina, mercantilização da saúde e níveis crescentes de descrédito da ciência. Se nada for feito para barrarmos tudo isso, gradualmente viraremos todos bestas-humanas, como na peça de Ionesco. E, como nela, os últimos que permanecerem humanos verão um espetáculo muito triste.
