A segurança baseada em evidências

Impressionadas com os resultados obtidos na área da saúde, as autoridades da área da segurança resolveram também utilizar dados científicos para supostamente melhorar a segurança da população. A ideia básica era estudar cientificamente intervenções para a redução dos índices de criminalidade. Começou-se por avaliar os diversos bairros de uma cidade para determinar os índices de criminalidade com ou sem a aplicação das intervenções propostas. Para fazer isso, uniram esforços de vários pesquisadores do setor. No início, os estudos financiados pelo governo não mostravam muitos benefícios com nenhuma intervenção e se pensou que o programa não traria benefícios à população, pois se acreditava que aprovar intervenções era sinônimo de trazer benefícios. Porém, como o orçamento público era cada vez mais enxuto e não possibilitava mais o investimento em pesquisas desse tipo, houve a necessidade de imaginar uma alternativa para custear as pesquisas. Logo as próprias empresas da área da segurança passaram a custear os estudos. Afinal, se na saúde ninguém parecia se importar com as origens do financiamento científico, isso não seria diferente na área da segurança. Diziam que “ciência é ciência e não se discute!” Assim nasceu e floresceu a SBE (Segurança Baseada em Evidências).

Os primeiros estudos “positivos” não tardaram a ganhar destaque nos meios de comunicação. Em um determinado bairro da cidade, os pesquisadores determinaram que a chance de um morador ser vítima de roubo ou latrocínio em um período de 10 anos era de 4% sem as intervenções. Com as intervenções – as quais incluíam o porte de armas pela população civil ou o uso de escolta armada – este índice era reduzido em 25%, caindo para 3%. A possibilidade de reduzir em 25% a chance de roubo e latrocínio parecia ótima. Nenhuma intervenção prévia tinha obtido um resultado assim. Pelo menos era o que se acreditava, porque isso nunca tinha sido estudado antes. Alguém fez um cálculo de que, extrapolando-se a pesquisa para outros bairros da cidade (artifício que se dizia ser comum na área da saúde), uma cidade de 1 milhão de habitantes poderia evitar 10 mil casos de roubos e latrocínios em apenas 10 anos. Muitos traumas e, até mesmo, várias mortes seriam evitadas. Para isso só deveríamos todos andar armados até os dentes.

As notícias falavam maravilhas das novas intervenções. Dizia-se que essa nova maneira de encarar a questão da segurança era um “game changer”. Utilizava-se também o termo “breakthrough”, e ele era repetido mesmo que poucos soubessem o que ele significava. Mas o termo que fez mais sucesso foi o “magic bullet”. Finalmente a ambiguidade do termo se fazia entender. Além disso, com intervenções desse nível, finalmente parecia que a batalha contra a violência urbana estava ganha e ninguém mais seria roubado ou morto por assaltantes. Evitava-se falar nas causas sociais da violência urbana, as quais não eram abordadas pelas novas magic bullets. Evitava-se falar também dos possíveis riscos de manter uma população armada pelas ruas. E, evidentemente, falava-se menos ainda no fato de que as pesquisas tinham sido patrocinadas e controladas pela própria indústria da segurança, a qual fabricava as armas, fornecia os seguranças armados e, obviamente, lucraria muito com a empreitada. Assim como ocorre na área da saúde, ninguém se preocupou em replicar as pesquisas conduzidas pela indústria para que esses resultados fossem confirmados por pesquisadores independentes. A simples sugestão de que os números apresentados poderiam estar exagerados ou distorcidos pelos interesses financeiros dessa indústria era tratada como tabu, fakenews ou teoria conspiratória. Assim, ninguém levou a sério a necessidade de realizar novos estudos conduzidos por pesquisadores que fossem isentos de qualquer vínculo financeiro com a indústria da segurança antes da ampla adoção de medidas tão drásticas. Foi dessa forma que, em pouco tempo, as ruas estavam cheias de gente armada e amedrontada.

Um certo dia, algumas pessoas de boa-fé puseram-se a pensar e questionaram não apenas a veracidade e credibilidade dos dados apresentados, mas também se aquelas intervenções propostas eram as únicas maneiras de evitar roubos e latrocínios. Logo ficou claro que a maioria das pessoas não sofreria roubo nem latrocínio de qualquer modo mesmo se não andasse armada ou escoltada. Outros poderiam mudar algumas coisas em sua rotina diária para minimizar aquele risco. Era possível evitar os pontos mais perigosos do bairro, não sair sozinho à noite, estreitar laços de vizinhança para que todos se cuidassem uns aos outros ou ainda aprender alguma forma de autodefesa não armada. Havia ainda a possibilidade de que o poder público tomasse algumas medidas para reduzir a criminalidade agindo em suas causas básicas, como a pobreza, o desemprego, a desigualdade entre tantas coisas que levam as pessoas a cometer crimes. Porém, para fazer isso o poder público teria que revisar a sua própria relação com a indústria armamentista, pois logo ficou claro que essa mesma indústria era um dos maiores financiadores das campanhas políticas. Foi nesse momento que começou uma verdadeira revolução na tal SBE, cujos desfechos ainda não são conhecidos.

Existe uma parábola interessante sobre dois peixinhos que nadavam tranquilamente até encontrarem um peixe mais velho que, ao vê-los, sorri e pergunta: “Como está a água, pessoal?”. Os peixinhos se entreolham e respondem ao velho peixe, atordoados: “Que água?”. Às vezes estamos tão imersos em algo que temos dificuldade de enxergar alguns detalhes óbvios mesmo que nos esforcemos para isso. Nessas horas é preciso mudar de ponto de vista, nem que seja por um breve período, para enxergar o que o outro parece ver. Às vezes temos que nos afastar para enxergar ainda melhor. E outras vezes temos que mudar o contexto de uma coisa para compreendê-la melhor. Como dizia o velho Kurt Vonnegut, “and so it goes” ou “é assim mesmo”.