Da imprevisibilidade da vida

Vivemos em um mundo absolutamente encantado e governado pelas mais variadas formas de previsões. E pouco importam se elas acabam se confirmando ou se estão totalmente equivocadas. Existem previsões para a saúde das pessoas daqui a vários anos, previsões climáticas para daqui a várias semanas e, até mesmo, previsões para o crescimento da economia para daqui a vários meses. O que todas essas previsões têm em comum é que elas estão à mercê de fatores em grande medida alheios ao controle de quem faz as previsões. Com muita frequência, fazemos planos pessoais com base nas previsões climáticas e acabamos nos arrependendo. Além disso, as epidemias, guerras e crises econômicas estão aí para mostrar que as previsões relacionadas à saúde e à economia também devem ser vistas com ressalvas.

O problema da onipresença das previsões em nossas vidas é que nos acostumamos a elas e acabamos ficando dependentes por mais falhas que sejam. Além disso, logo perdemos a capacidade de analisar os dados disponíveis e fazer até mesmo previsões tão simples como saber se vai chover nas próximas horas. Neste caso, o excesso de previsões disponíveis acaba atrofiando a nossa capacidade de prever, algo que pode ser muito importante para nossa sobrevivência. Não se trata de acabar com as previsões, as quais costumam ser bem-intencionadas e podem ser úteis, mas de as analisarmos com parcimônia e levando em consideração que grande parte de nossa vida é feita de imprevistos. Às vezes uma parte bem interessante e deliciosa.

Um aspecto interessante relacionado às previsões é que elas não são neutras. Quando uma previsão é feita e disseminada com autoridade ela tem em certa medida a capacidade de moldar as atividades das pessoas e acabar se confirmando não porque estivesse certa desde o início, mas por ter influenciado alguns fatores estratégicos, de maneira semelhante ao conceito de hiperstição de Nick Land, no qual uma determinada ideia poderia provocar a sua própria realidade no futuro. Para que isso ocorra, a confirmação daquela previsão deve poder ser influenciada pelo comportamento humano. Assim, não podemos interferir no clima da próxima semana porque a imensa maioria dos fatores que determinam o clima estão alheios ao comportamento humano. Por outro lado, uma determinada previsão pode desencadear comportamentos que acabem por confirmá-la, como quando uma previsão de retração da economia leva as pessoas a reduzirem drasticamente seus hábitos de consumo e isso acaba provocando por si só algum grau de retração da economia, ou quando um diagnóstico ou prognóstico feitos pelo médico acabam afetando a maneira de agir de um paciente. Isso também evidencia que em certa medida as previsões podem ser usadas como algum mecanismo de controle do comportamento humano com fins nem sempre altruístas.

Escrevo este texto na última semana do ano, para a qual tinha planejado algumas atividades que tiveram que ser canceladas para que eu me recuperasse de uma imprevista covid e respeitasse o período de isolamento necessário. Não que ficar em casa seja ruim. Muito pelo contrário: a permanência em casa me proporciona fazer várias das coisas de que mais gosto, o que inclui ler, escrever, ouvir boa música, assistir alguns filmes, cozinhar, tomar um vinho, jardinar e curtir a família. Enfim, não há do que reclamar em relação ao período de convalescença. Entendo esses acontecimentos como um ensinamento necessário que o universo volta e meia transmite aos homens de algum discernimento visando lembrar que tudo na vida é efêmero, que nossos planos são incertos e que não devemos deixar para depois as coisas boas da vida. O que me faz lembrar o final do segundo livro e uma das partes mais belas das Meditações de Marco Aurélio:

“Na vida de um homem, o seu tempo é um mero instante, sua existência é um fluxo, sua percepção é uma névoa, seu corpo está em constante decomposição, sua alma é inquieta, o destino é imprevisível e a futuro é incerto.

Em resumo, todas as coisas do corpo são como um rio, aquelas da alma são sonho e delírio, a vida é luta e desterro, e o que nos espera é o esquecimento.”

A ideia de transformar em limonada os limões que a vida nos oferece é um aprendizado valioso que não deveríamos jamais esquecer. Talvez esta folga forçada possa ser mais do que um retiro reflexivo e sirva para manter sempre viva a ideia de nossa efemeridade e da imprevisibilidade da vida. Que não me interpretem mal: esta imprevisibilidade é exatamente o que dá vida à própria vida, caso contrário seríamos todos como o infeliz personagem de Bill Murray em O feitiço do tempo que vivia em um eterno dia da marmota.

Se a vida é imprevisível, o próprio homem racional não poderia ser diferente. O ótimo René Dubos dizia que quanto mais evoluído for um animal, maior deve ser a sua imprevisibilidade em termos de comportamentos e de respostas aos estímulos do ambiente. Esqueça as respostas imediatas, reflexas e previsíveis dos animais inferiores e das máquinas, é exatamente o caráter imprevisível que torna o homem tão especial e que nos coloca em um patamar evolutivo superior.

Dostoiévski dizia mais ou menos isso quando afirmava que o homem fazia de tudo para demonstrar que não era uma previsível tecla de piano, a qual tocava sempre a mesma nota ao ser acionada. Como um animal absolutamente inconstante, o homem buscaria a imprevisibilidade. Talvez a vida só exista de fato quando conseguimos fugir da fórmula 2 + 2 = 4, quando agimos por vontade própria de maneira imprevisível ou quando aceitamos os imprevistos que a vida nos oferece e descobrimos que 2 + 2 = 5 também pode ser uma “coisinha encantadora”.

Se tanto o homem como a vida são feitos de imprevisibilidade, é surpreendente que vivamos em uma sociedade desumanizante que cada vez mais tenta prever (e, em certa medida, controlar) todas as nossas ações, o que se refere tanto às atividades das pessoas em seus afazeres diários como às condutas médicas no caso mais específico. É também estranho que não recebamos nenhum tipo de preparação para entender e aceitar a imprevisibilidade da vida e de reagir de forma mais sábia e fazer algo positivo a partir disso. Este texto surgiu a partir de um imprevisto, escrito no fervor literal de uma síndrome gripal. Por tal motivo, espero que eventuais desmesuras sejam devidamente consideradas como um efeito ou sintoma bizarro da covid. E que o próximo ano nos brinde com novas surpresas e deliciosos imprevistos. E com a serenidade e sabedoria necessárias para lidar com as incertezas de um mundo imprevisível.