As canetas que emagrecem

A humanidade tem sido bombardeada por uma campanha de marketing gigante sobre as “canetas que emagrecem”. Dizem que elas são a nova febre entre políticos e outras celebridades que acabam servindo de garotos-propaganda para o mais novo milagre da indústria farmacêutica. Na verdade, trata-se de um grupo de medicamentos conhecidos como agonistas dos receptores do peptídeo semelhante ao glucagon 1 (GLP-1) que são representados principalmente pela liraglutida (Victoza[i]) e pela semaglutida (Ozempic[ii]). Em estudos sobre o diabetes melito (indicação primária desses fármacos), os pesquisadores observaram que as pessoas que recebiam a droga também perdiam peso. Ou seja, um efeito colateral inesperado acabou atraindo a atenção da indústria para um nicho de mercado que não para de crescer: o do emagrecimento sem esforço.

A campanha da indústria aproveita o momento oportuno atual em que criamos uma sociedade absolutamente propensa ao engorde. Passamos o dia sentados em frente a telas e nos empanturrando de porcarias pseudoalimentícias vendidas livremente e ainda alardeadas como saudáveis em anúncios na TV, nas redes sociais e em outras mídias. Um estudo recente demonstrou que nos últimos 30 anos a prevalência de diabetes entre os jovens aumentou 60%.[iii] Isso nada tem que ver com genética ou medicamentos, é pura e simplesmente a perpetuação de hábitos de vida absolutamente prejudiciais à saúde da população. Em um mundo minimamente sensato, o que veríamos seria as autoridades governamentais e da área da saúde alertando para o problema e realizando as transformações necessárias na sociedade para voltarmos a ter hábitos de alimentação e de estilo de vida geral mais saudáveis do que estes que desenvolvemos nos últimos 30 anos. O problema é que, em vez da solução inteligente e duradoura, parece que mais uma vez optaremos pela solução mágica e fácil: “canetas que emagrecem”.

Há vários problemas com a solução mágica proposta pelas canetas emagrecedoras e seus defensores aguerridos. O primeiro deles é que esses medicamentos não são isentos de risco. Muito pelo contrário, a bula desses remédios nos Estados Unidos traz um alerta enorme sobre o risco de câncer de tireoide detectado em animais de laboratório e cuja incidência ainda não foi definida em humanos. Ainda assim, o risco parece ser suficientemente importante a ponto de a empresa fabricante (Novo Nordisk) ter feito um acordo judicial milionário, entre outras coisas, por ter minimizado este risco de câncer em seres humanos[iv]. Além disso, os riscos listados na bula, como pancreatite e insuficiência renal, são suficientemente graves para que se tenha muita precaução ao prescrever ou usar este tipo de medicamento.

Como costuma ocorrer em campanhas de marketing bem projetadas como é o caso das “canetas que emagrecem”, isso só pode ser feito com a little help from my friends, como dizia a velha canção. Assim, não surpreende que a empresa fabricante do mimo terapêutico tenha sido também processada nos Estados Unidos por pagar propinas aos médicos para aumentar o número de prescrições dos medicamentos[v]. Além disso, os espaços midiáticos não são gratuitos. Basta fazer uma pequena pesquisa no Google com as palavras “o jornalista viajou a convite da Novo Nordisk”[vi] para ver que a empresa também não economizou nas viagens e estadias em outros continentes para que os jornalistas produzissem matérias favoráveis a essas drogas. Para piorar ainda mais a situação, a empresa também é acusada de pagar propina a farmacêuticos no Reino Unido para ampliar as vendas das drogas[vii]. Com médicos, farmacêuticos e a mídia do lado da empresa fica bem mais fácil emplacar uma narrativa. Por mais tosca que seja.

Se pelo menos houvesse um perfil de custo-benefício razoável para essas canetas mágicas, a coisa não seria tão ruim. O problema é que seu custo é proibitivo para quem quer que custeie o uso dessas drogas. Com um custo mensal de mais de 1.000 dólares nos Estados Unidos, é pouco provável que muita gente possa usar os medicamentos, a não ser que o seu uso seja cada vez mais judicializado como costuma acontecer nesses casos. E, para que isso ocorra, é apenas uma questão de tempo. Ou seja, no final, todos nós pagaremos a conta.

Em termos de resultados clínicos, um estudo com a liraglutida publicado em 2015 no NEJM[viii] demonstrou uma diferença de pouco mais de 5 kg ao final de 1 ano de tratamento entre as pessoas que receberam a droga e aquelas que receberam placebo. Em um estudo semelhante com a semaglutida publicado também no NEJM[ix] em 2021, a diferença em um período semelhante foi maior (cerca de 12 kg). O problema é que estes são estudos patrocinados pela própria indústria, não foram replicados por pesquisadores independentes, contam com pacientes cuidadosamente escolhidos e não refletem os resultados esperados em uma população heterogênea vista na prática clínica diária. Como se isso não bastasse, cerca de 1 ano após a suspensão do uso do medicamento as pessoas recuperam 2/3 do peso perdido.[x] Neste caso, os 12 kg perdidos já murcharam e viraram míseros 4 kg. Não parece se tratar de um benefício de longo prazo para a saúde da população a menos que as pessoas utilizem a droga continuamente ao longo de muitos anos, ficando expostas aos riscos inerentes conhecidos e aqueles ainda desconhecidos. É evidente que existem melhores maneiras de aplicar o seu dinheiro.

Na vida real, é provável que os efeitos das tais canetas mágicas sejam ainda mais insignificantes. Como acontece com qualquer intervenção médica, algumas poucas pessoas podem apresentar um benefício acima da média e perder bastante peso, da mesma forma que algumas poucas pessoas no outro extremo podem não perceber nenhum benefício ou até mesmo engordar com a droga. A imensa maioria das pessoa tende a apresentar benefícios médios que devem ser bem menores do que aqueles já não muito expressivos demonstrados pelos estudos científicos, já que os diversos vieses inerentes aos estudos (ainda mais aqueles financiados pela própria indústria) tendem a exagerar os benefícios das intervenções. Além do mais, na vida real os efeitos colaterais tendem a ser mais comuns do que nos estudos clínicos por diversas razões. Considerando isso tudo e a já descrita recuperação de boa parte dos quilos perdidos logo após a suspensão do tratamento, é natural que você a essa altura se sinta enganado. Há razões de sobra para isso. Em um nível individual, as chances de que as “canetas emagrecedoras” resolvam o seu problema de obesidade em longo prazo são bastante pequenas. Já as chances de que essas canetas mágicas resolvam o problema de obesidade da população são absolutamente nulas.

Canetas não emagrecem as pessoas. Nem todas as canetas do mundo emagrecerão uma população cada vez mais sedentária e que não se alimenta adequadamente. Canetas apenas escrevem. Mas elas podem escrever coisas muito boas. A caneta de um médico de confiança que prescreve mudanças de estilo de vida pode trazer efeitos menos dramáticos e que não causariam impacto na mídia sensacionalista, mas que podem ser muito significativos em médio e longo prazo. A caneta de um urbanista que projeta espaços públicos convidativos ao deslocamento a pé ou de bicicleta pode emagrecer muita gente. A caneta de um arquiteto que projeta prédios com escadarias claras, arejadas e convidativas – bem diferentes das escadarias escuras e claustrofóbicas tão comuns atualmente – pode emagrecer muita gente. A caneta de um legislador que cria leis que incentivem uma alimentação saudável, possibilitem formas mais inteligentes de mobilidade urbana e que de alguma maneira limitem a propaganda e o incentivo ao consumo de refrigerantes e outras porcarias engordantes pode trazer benefícios enormes para a população. E a caneta de um governante que crie ciclovias e áreas verdes urbanas livres de automóveis onde as pessoas possam caminhar e pedalar tranquilamente pode trazer benefícios para várias gerações de pessoas. Estas são as únicas canetas que podem emagrecer as pessoas de forma segura e consistente.


[i] https://www.accessdata.fda.gov/drugsatfda_docs/label/2017/022341s027lbl.pdf

[ii] https://www.accessdata.fda.gov/drugsatfda_docs/label/2017/209637lbl.pdf

[iii] https://www.bmj.com/content/379/bmj-2022-072385

[iv] https://www.bmj.com/content/358/bmj.j4214

[v] https://www.bmj.com/content/358/bmj.j4214

[vi] https://www.google.com.br/search?q=jornalista+viajou+a+convite+da+novo+nordisk&ei=R6W5Y47sMe_U1sQPtK6PQA&start=0&sa=N&ved=2ahUKEwjOq-zR97X8AhVvqpUCHTTXAwg4FBDy0wN6BAgEEAQ&biw=1366&bih=625&dpr=1

[vii] https://scrip.pharmaintelligence.informa.com/SC147528/Novo-Nordisk-Named-And-Shamed-For-Paying-Pharmacists-To-Boost-Weight-Loss-Drug-Sales

[viii] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmoa1411892

[ix] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2032183

[x] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35441470/#:~:text=Conclusions%3A%20One%20year%20after%20withdrawal,similar%20changes%20in%20cardiometabolic%20variables.