Poucos meses após a resolução do Conselho Federal de Medicina regulamentando a prática da chamada “telemedicina” no país já se pode vislumbrar um futuro não muito alvissareiro para médicos e pacientes. Ainda que a dita resolução ressalte que a consulta presencial representa o padrão-ouro de consulta na medicina e que o médico tem autonomia para decidir quando uma consulta presencial é necessária, na prática essas decisões são fortemente influenciadas por pressões econômicas variadas, as quais vão desde os interesses das operadoras de saúde – sempre ávidas por restringir o acesso dos beneficiários a consultas presenciais – até a gigantesca indústria de aparatos tecnológicos diversos que visam transformar os pacientes em dados biométricos e lucrar com a distância cada vez maior entre pacientes e médicos de carne e osso.
Mesmo após três longos e sofridos anos de pandemia e com a vida de todos já em grande medida normalizada, ainda existe quem acredita que as consultas médicas presenciais seguem sendo “caras, ineficientes e potencialmente contagiosas”, como diz uma dessas empresas de tecnologias para telemedicina em seu material publicitário[1]. Talvez influenciada por este apelo crescente à virtualização do cuidado médico, a Anvisa autorizou há poucas semanas e sem muito alarde aquele que deve ser o primeiro de uma longa série de engenhocas que visam, além de subtrair dinheiro de consumidores incautos, permitir que os próprios pacientes realizem um simulacro de exame físico em sua própria casa.

A ideia por trás do N9[2] – um dispositivo de autoexame produzido pela empresa israelense Nonagon – é de que os pacientes coletem os dados referentes a nove diferentes aspectos de sua saúde: visualização da garganta e da membrana timpânica, ausculta cardíaca, pulmonar e abdominal, oximetria, frequência cardíaca, temperatura e visualização de lesões de pele. Após a coleta dos dados, eles podem ser transmitidos aos médicos ou a outros atores da rede de cuidados de saúde para serem avaliados, sempre através de um serviço de assinatura mensal devidamente contratado. Parece que o serviço aqui no Brasil ficará inicialmente restrito a operadoras de saúde, mas pode-se prever que ele passe a ser comercializado diretamente aos pacientes, já que este é o modelo de negócios da empresa nos Estados Unidos e em outros países. O problema é que a “verdadeira” ideia por trás do N9 pode ser a de dar mais um pequeno passo na direção errada: em direção ao distanciamento físico entre médicos e pacientes e ao esvaziamento completo da profissão médica.
Mais do que discutir a segurança dos pacientes (e, por tabela, dos médicos) e a sua capacidade de obter boas imagens da orofaringe e da membrana timpânica ou mesmo sons cardíacos e pulmonares que sejam úteis e confiáveis para a tomada de decisões, cabe aqui questionar o rumo e o crescente esvaziamento da atividade médica. É evidente que as novas gerações de médicos e pacientes têm mais familiaridade com essas tecnologias. Porém, isso nos leva automaticamente a questionar como será feita a assistência daquelas pessoas mais velhas e com menos afinidade com as tecnologias modernas se a assistência médica continuar sendo rapidamente virtualizada com o consequente desmonte gradual da rede de consultas presenciais oferecidas às pessoas.

É importante lembrar que essa captação de informações clínicas úteis, a qual os médicos executam há séculos por meio do ritual do exame físico, não é uma coisa tão simples como parece. A simples ausculta do abdome, por exemplo, não tem praticamente nenhum valor na avaliação de um paciente se ela não vier acompanhada de um exame de palpação cuidadosa do abdome. Além disso, enquanto o médico de carne e osso palpa o abdome ele observa coisas sutis como a tensão da musculatura subjacente e a expressão facial do paciente em resposta a cada movimento seu – coisas difíceis de mensurar e de transformar em dados –, e simplificar as coisas aqui pode ser perigoso. O que estamos fazendo é terceirizar o antigo ritual médico do exame físico ao deixá-lo sob a responsabilidade do próprio paciente e de engenhocas tecnológicas variadas e de efetividade clínica incerta.
A medicina sempre teve uma importância proporcional à responsabilidade que envolve toda a ciência e arte da profissão. Coletar uma boa anamnese, examinar cuidadosamente o paciente, chegar a um diagnóstico e definir uma conduta terapêutica sempre foram a base de nossa atividade. Éramos importantes exatamente porque executávamos com maestria este ritual da consulta e defendíamos a importância deste ato médico perante à sociedade. Gradualmente nos afastamos fisicamente e passamos a conversar cada vez menos com os pacientes, damos cada vez mais importância aos dados de exames complementares em detrimento daqueles coletados “à moda antiga” no próprio consultório com o exame físico e transferimos grande parte das decisões clínicas para algoritmos de computador, diretrizes e protocolos. Como se não bastasse, agora terceirizaremos o exame físico para os próprios pacientes. Esvaziamos a profissão e agora sobra quase nada para os médicos fazerem, o que pode nos tornar absolutamente irrelevantes e prescindíveis nas próximas décadas.

É preocupante a perspectiva vislumbrada para os futuros médicos, mas ela é sem dúvida muito pior para os futuros pacientes. Um cuidado clínico fisicamente distante e totalmente intermediado por máquinas será apenas um simulacro de medicina. Há que se perguntar o que farão os médicos do futuro se já não forem capazes de conversar adequadamente com os pacientes, examiná-los e tomar decisões terapêuticas por conta própria. Talvez a medicina consiga se reinventar e os médicos do futuro ajam como máquinas e se ocupem apenas de analisar uma enormidade de dados abstratos transmitidos remotamente por dispositivos variados. Mas esta atividade fria e inumana já não será a mesma medicina que conhecemos e que ainda tentamos praticar, onde o “curar” é tanto a aplicação do tratamento ideal como a simples presença física do médico a cuidar e confortar aquela pessoa que sofre.

[1]https://www.google.com.br/search?q=nonagon+n9&sxsrf=AJOqlzWomYKLMFFOyUEz26zEwK9AonZ6tg:1679146260268&source=lnms&tbm=vid&sa=X&ved=2ahUKEwjH2fmiy-X9AhWIrpUCHYRZCFMQ_AUoBHoECAEQBg&biw=1366&bih=625&dpr=1#fpstate=ive&vld=cid:38762d3e,vid:wRnlI0E6x4s