O insano elogio da indústria

Que não me interpretem mal, pois ainda que reconheça vários avanços reais proporcionados pela indústria farmacêutica e de tecnologias médicas, elogiar essa indústria está longe de concordar com algumas de suas práticas. Ainda mais difícil é concordar com o protagonismo que os médicos têm transferido à indústria, muitas vezes ofuscando a própria atuação do profissional. Mas convenhamos que essa indústria está fazendo um belo trabalho, pelo menos sob o ponto de vista corporativo. A indústria fatura muitos bilhões anualmente e cresce sem parar, apesar de as pessoas se sentirem cada vez mais doentes[i]. Este paradoxo deveria nos fazer questionar essa indústria e seus produtos ou pelo menos a forma como são usados em nossa prática diária. Talvez estejamos exagerando na dose ou utilizando de forma indiscriminada algo que deveríamos usar com muito mais sobriedade e parcimônia.

A indústria nunca teve como objetivo principal a saúde das pessoas e não há nada de errado com isso. O seu objetivo principal – como de qualquer outro tipo de indústria – é produzir, criar demandas e vender os seus produtos, multiplicando seus lucros e enchendo as burras de seus acionistas, o que é absolutamente legal e compreensível. Se as pessoas nunca usaram tanto remédio como hoje e ainda assim nunca estiveram tão doentes, este é um problema de nossos sistemas de saúde e não da indústria. Cuidar bem da saúde das pessoas e zelar pela sustentabilidade dos sistemas de saúde deveria ser uma preocupação de médicos, governantes e da própria população que paga seus impostos. O que não está certo é atribuirmos à indústria a responsabilidade por decisões tomadas direta ou indiretamente por nós mesmos.

Não é culpa da indústria que tenhamos gradualmente transferido a ela a responsabilidade pela realização de grande parte (até 75%!) dos estudos científicos que avaliam seus próprios produtos[ii],[iii], dando a ela bastante autonomia para delinear as pesquisas, conduzir os estudos, analisar os dados e publicar de maneira seletiva apenas aquilo que esteja de acordo com os seus interesses corporativos. A indústria apenas tenta cumprir o seu papel em um ambiente capitalista neoliberal: busca faturar o máximo e o mais rápido possível. E, pelo que temos visto, ela tem tido muito sucesso. Se a ciência médica pode estar sendo distorcida[iv] pelos evidentes vieses causados pela influência da indústria no ambiente científico, este é um (grande) problema que nós médicos criamos e teremos que resolver sob pena de levarmos os sistemas de saúde à bancarrota e de destruirmos a credibilidade da ciência[v].

Até mesmo a cultura de eventos médicos “científicos” realizados em hotéis chiques ou em paraísos turísticos nunca foi uma exigência da indústria nem muito menos da boa medicina ou da própria ciência. Por alguma razão nos acostumamos a isso e agora nos parece natural que nossa ciência seja exibida de maneira espalhafatosa em ambientes nababescos patrocinados pela indústria, como se isso fosse algo correto ou desejável sob o ponto de vista ético[vi]. Mais uma vez devemos isentar a indústria dessa responsabilidade, já que o apego ao luxo em detrimento da independência científica foi uma (triste) opção que nós mesmos fizemos.

Também não é culpa da indústria que até mesmo os periódicos científicos que publicam a nossa ciência dependam financeiramente do dinheiro dela para sobreviver. É claro que haveria outras maneiras de a sociedade manter esses periódicos tão importantes funcionando de forma ativa e independente. Porém, por algum motivo achamos que seria melhor que a indústria os sustentasse por meio de propagandas, taxas e reimpressões e, como consequência disso, tivesse uma forma muito efetiva de influenciar as publicações feitas[vii]. Mesmo na mídia leiga, a indústria não tem culpa se jornalistas aceitam seus mimos ofertados com o intuito de obter artigos com uma visão mais otimista de seus produtos[viii]. Muito menos é culpa dela se as redes sociais viraram uma selva onde se pode fazer propaganda de medicamentos sem qualquer controle efetivo e contratar influenciadores sempre ávidos para alardear os supostos efeitos benéficos de medicamentos em troca do vil metal[ix].

Ainda menor é a culpa da indústria por termos deixado a sua influência chegar até o ponto em que as próprias agências reguladoras, as quais deveriam controlar de forma isenta e independente os produtos dessa indústria, dependessem financeiramente dela e recebessem grande parte de seu sustento dessa mesma indústria[x]. É ainda mais insignificante a culpa da indústria por nossos políticos aceitarem doações de campanha que os acabam deixando eternamente endividados com essa indústria, o que muito provavelmente explica muitas de suas ações depois de eleitos[xi],[xii]. Tampouco a indústria é culpada por muitos médicos, instituições acadêmicas, sociedades de especialidades médicas e associações de pacientes aceitarem os seus regalos, doações, financiamentos ou patrocínios e, em consequência disso, desenvolverem uma crescente dependência que coloca em dúvida a sua própria credibilidade.

Enfim, é uma loucura acreditarmos que a indústria fizesse algo diferente do que faz quando entregamos a ela todas as ferramentas para controlar os rumos da medicina e da ciência que a embasa. É uma loucura continuarmos reduzindo os investimentos públicos na ciência de verdade feita por pesquisadores sérios e que não dependam financeiramente da indústria. É uma loucura seguirmos interpretando evidências científicas enviesadas produzidas pela indústria como se fossem dados imaculados ou ciência da melhor qualidade sem termos acesso pleno aos dados sigilosos que são ocultados pela indústria. É uma loucura não replicarmos os estudos da indústria para confirmá-los antes de aprovar drogas caríssimas que ameaçam a sustentabilidade de todo o sistema de saúde. É uma loucura aceitarmos regalos da indústria e participarmos de eventos médicos espetaculosos, quando poderíamos realizá-los de maneira mais sóbria e preservando a honestidade e a independência científica. É uma loucura acreditarmos que agências reguladoras financiadas pela indústria terão isenção suficiente para analisar de forma crítica e independente os estudos por ela apresentados. É uma loucura acreditarmos que políticos cujas campanhas foram financiadas pela indústria não se esforçarão para retribuir tamanha “gentileza”. E é uma loucura ainda maior acreditarmos que nossos sistemas de saúde e a própria medicina sobreviverão a essa influência hiperbólica da indústria em todas as etapas do cuidado médico e à perda progressiva de importância que nós médicos nos autoinfligimos. A boa notícia é que ainda podemos mudar.


[i] https://www.fiercepharma.com/pharma/top-20-pharma-companies-2022-revenue

[ii] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846

[iii] https://undsci.berkeley.edu/who-pays-for-science/

[iv] https://kiej.georgetown.edu/sergio-sismondo-ghost-managed-medicine-big-pharmas-invisible-hands-mattering-press-2018/

[v] https://catalogofbias.org/biases/industry-sponsorship-bias/

[vi] https://www.intercept.com.br/2022/05/30/mantecorp-farmasa-alektos-remedio-pediatras-micareta-abada/

[vii] https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.0020138

[viii] https://www.scielo.br/j/icse/a/qJzYBcyDhsfKZxRMytJv5fn/?lang=pt

[ix] https://www.jmir.org/2022/3/e29422/

[x] https://www.nytimes.com/2022/09/15/health/fda-drug-industry-fees.html

[xi] https://www.opensecrets.org/industries/summary.php?ind=H04&cycle=All&recipdetail=M&sortorder=U

[xii] https://www.statnews.com/feature/prescription-politics/federal-full-data-set/