A medicina domesticada

A domesticação é um processo muito antigo que tem sido utilizado pelo homem para controlar de alguma forma as outras espécies. Domesticamos diversos animais para que pudéssemos satisfazer as nossas necessidades como espécie em termos de alimentação e vestuário. Uma espécie domesticada é mais dócil e servil, o que facilita muito o seu controle pelos homens. Além disso, animais domesticados não percebem a sua situação degradante e perdem gradativamente a capacidade de lutar por seu alimento no ambiente, acabando por se tornarem cada vez mais dependentes. Porém, existe também um tipo de domesticação intraespecífica no qual alguns membros mais poderosos de uma espécie tentam domesticar e explorar aqueles mais vulneráveis e submissos. Assim, a domesticação é também uma forma de dominação.

A medicina tem-se deixado domesticar de maneira assustadora nas últimas décadas. Agimos como seres domesticados toda vez que nos submetemos a atender pacientes em condições aviltantes ou em consultas-relâmpago apenas por incapacidade dos gestores ou porque os interesses coorporativos por trás dessa visão mercantilista da medicina assim o exigem. Passado algum tempo, acabamos nos acostumando à nova situação, deixamos de reclamar e seguimos dóceis e servis. O problema é que, no final das contas, isso acarreta uma piora progressiva das condições de trabalho e de vida para os profissionais e para os pacientes.

Também agimos como profissionais domesticados quando nos acostumamos a ver a indústria realizando a pesquisa científica que nós mesmos deveríamos estar fazendo. Talvez nos pareça mais cômodo receber informações prontas – ainda que visivelmente enviesadas[1] – sobre a ciência que embasa todas as nossas intervenções, mas isso pode atrofiar a nossa capacidade de realizar a pesquisa clínica de forma independente e honesta, novamente com resultados nefastos para médicos e pacientes no longo prazo. A própria cultura de tomar decisões com base mais em algoritmos e diretrizes do que no raciocínio clínico e na experiência profissional acaba atrofiando nossa capacidade de buscar soluções de forma ativa e criativa, além de reduzir nossa capacidade para a análise crítica da ciência.

Para piorar as coisas, o que estamos vislumbrando é uma revolução tecnológica que deixará a medicina e os profissionais ainda mais domesticados, uma vez que passarão a depender cada vez mais de recursos tecnológicos para a execução de atividades que eram tradicionalmente realizadas à beira do leito ou nos consultórios diretamente entre pessoas de carne e osso. Ao aceitarmos que a medicina seja colonizada pela indústria da tecnologia e que nosso trabalho seja em grande medida intermediado ou até mesmo substituído por máquinas, estamos correndo o perigo de ficarmos dentro de pouco tempo completamente dependentes das tecnologias digitais ou até mesmo alijados do processo de cuidados médicos, o que pode acontecer assim que a indústria conseguir oferecer, por meio das novas tecnologias, os seus medicamentos diretamente aos pacientes sem precisar da intermediação dos médicos[2].

A domesticação do homem não é novidade. O ótimo René Dubos já dizia que o homem domesticado pode até ser um bom cidadão, mas ele fica totalmente inapto para a sobrevivência quando o ambiente a que ele se adaptou muda e deixa de fornecer os víveres que ele agora já não tem condições de obter por conta própria[3]. É claro que Dubos se referia ao ambiente físico em que o homem se encontra, mas a analogia serve muito bem se considerarmos o ambiente cultural em que nós médicos vivemos e atuamos. Este nosso “pacato cidadão médico” atual, absolutamente dócil e servil a um sistema cada vez mais perverso ao exercício da boa medicina, corre o risco de ser extinto ou gradualmente substituído pelas máquinas simplesmente por sua complacência exagerada com um sistema contra o qual deveria ter se rebelado há muito tempo ou pelo menos exercido uma boa dose de resistência. Na ânsia de nos adaptarmos às exigências do mercado e às tecnologias modernas esquecemos das verdadeiras necessidades dos pacientes, de nossa importância histórica na sociedade e de como precisamos nos manter humanos acima de tudo.

A medicina domesticada já não consegue fazer ciência por conta própria nem estudar de maneira honesta e independente as suas ferramentas terapêuticas sem depender dos patrocínios da indústria. A medicina domesticada já não consegue defender as condições de trabalho ideais para seus profissionais nem os direitos das pessoas atendidas pelo sistema porque deve se dobrar aos interesses do mercado da saúde. A medicina domesticada depende cada vez mais das tecnologias e das máquinas para realizar um trabalho que era tradicionalmente humano e artesanal. Esta medicina domesticada não consegue nem mesmo proteger a saúde mental de seus trabalhadores e evitar a debandada crescente de seus profissionais. A medicina domesticada atual é uma presa fácil para a Big Pharma, a Big Tech e o Big Money.

É preciso recuperar um pouco da nossa condição de selvagens. Seríamos selvagens civilizados, é verdade, mas ainda assim selvagens com unhas e dentes. Unhas para lutar pela dignidade da profissão, para defender a saúde de nossos pacientes e para recuperar a credibilidade da ciência. E dentes para fazer com que esta não seja – como dizia Zygmunt Bauman – apenas mais uma crítica desdentada[4].


[1] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23135338/

[2] https://www.codastory.com/waronscience/pseudohealth/telehealth-companies-misinformation/

[3] Dubos, R. The mirage of health, 1959. Harper & Row.

[4] Bauman, Z. Liquid modernity, 2000. Polity Press.