Sobre burros e tatus

Diz a lenda que dois amigos conversavam e discordavam enfaticamente quanto à ideia de que a inteligência humana é superior àquela de todos os outros animais. Para comprovar seu ponto de vista, um deles desenvolveu um estranho experimento: colocaram um homem e um tatu cada qual em um buraco no chão. O tatu começou a escavar rapidamente e logo já tinha encontrado alimentos e um caminho que o levava de volta até a superfície. O pobre homem enfiado no outro buraco até tentou escavar com todas as suas forças, mas suas unhas em nada se pareciam com as garras de um tatu. Em pouco tempo, já sem ar e ridiculamente enfiado de ponta-cabeça na terra, o homem morreu e por ali ficou. Pela lógica defendida por um dos amigos na discussão, o bizarro experimento demonstraria a superioridade dos tatus em relação aos homens. É claro que muita gente discorda das conclusões desse experimento. Porém, existe um número crescente de pessoas que parece concordar com essa lógica.

No momento em que a medicina está sendo bombardeada pelos supostos benefícios das novas tecnologias digitais aplicadas aos cuidados de saúde, é importante manter a cautela e fazer uma análise menos apaixonada da situação. Como reza o bom senso, também não seria o caso de simplesmente se contrapor a todo tipo de novidades tecnológicas, pois algumas delas podem realmente ser muito boas. Porém, nunca é demais reforçar a necessidade de parcimônia ao analisarmos e, eventualmente, adotarmos as novidades tecnológicas, principalmente quando a sua adoção se basear em uma aparente superioridade das máquinas em comparação com o desempenho de seres humanos de carne e osso no cuidado com seus semelhantes.

É curioso ver como começam a surgir na literatura científica comparações estapafúrdias entre homens e máquinas como provedores de cuidados de saúde. Em um desses estudos[1], homens e máquinas foram comparados quanto ao conteúdo de suas respostas a questionamentos de pacientes em chats por texto em páginas da internet. Sem saber se a interação estava ocorrendo com homens ou máquinas, as respostas recebidas pelos pacientes foram avaliadas pelos pesquisadores. A conclusão do estudo foi de que as respostas das máquinas seriam mais empáticas. Em outro estudo[2] com pacientes portadores de dor crônica, um grupo de pessoas que recebiam psicoterapia em sessões telefônicas semanais foi comparado com um grupo que recebia psicoterapia mais um reforço diário por mensagens de inteligência artificial (IA). A conclusão dos autores foi de que o tratamento potencializado pela IA seria pelo menos tão bom quanto o tratamento feito por psicólogos ao telefone.

A questão básica que já deve estar clara a essa altura é de que em ambos os estudos os profissionais estavam competindo fora de seu “hábitat terapêutico” natural. Da mesma forma que um homem não pode viver como um tatu embaixo da terra, as pessoas também não foram feitas para consultar por meio de mensagens eletrônicas nem para realizar sessões de psicoterapia por telefone, ainda que possam fazer isso em situações especiais quando não houver alternativas mais adequadas. Somos seres humanos e grande parte de nosso poder terapêutico enquanto profissionais da saúde está em nossa presença física. Nenhuma mensagem de texto ou telefônica poderá se comparar com a presença física de um profissional empático que acolhe o sofrimento do paciente, que o escuta atentamente enquanto narra a sua história e que se emociona junto com ele. Se nosso padrão de cuidados felizmente ainda é a interação humana, não faz nenhum sentido realizar comparações que não envolvam a presença física daquela pessoa que acolhe e trata o outro ser humano que sofre. A menos que nosso objetivo seja desacreditar os profissionais de carne e osso e promover a sua substituição gradual por máquinas.

Nós, seres humanos, desenvolvemos riquíssimas habilidades de comunicação interpessoal ao longo da evolução e não deveríamos jamais descer com naturalidade até o nível de comunicação das máquinas, onde não existe verdadeiramente a fala, a escuta, o olhar, o toque ou gestos minimamente humanos. Assim, a comparação que poderia ter alguma utilidade clínica seria feita entre dois grupos onde a terapia é oferecida a um deles por profissionais de carne e osso fisicamente presentes, enquanto no outro grupo ela é oferecida por robôs supostamente inteligentes na forma de computadores, smartphones ou até mesmo de humanoides bizarros variados. E neste tipo de competição, nós seres humanos ainda somos imbatíveis.

A inteligência artificial tem certamente vários aspectos positivos, mas sua integração aos cuidados de saúde deveria ser feita de maneira bem mais parcimoniosa e limitada, sem esquecermos dos interesses poderosos que estão por trás dessas tecnologias digitais e de que a medicina não é simplesmente um comércio de serviços de saúde, mas sim uma atividade humana fundamental que deve ser exercida por pessoas de carne e osso. A realização de estudos que comparem humanos e máquinas no ambiente frio e virtual do ciberespaço – em vez do espaço físico real em que habitamos e onde ainda impera o calor humano – deveria ser evitada sempre que possível, pois serve apenas para dar força à narrativa falaciosa de que as máquinas nos podem superar em diversas funções, o que em nada ajuda a médicos e pacientes. É sempre bom saber que nós seres humanos nunca seremos máquinas nem tatus. Mas é preciso algum cuidado para também não sermos burros.


[1] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2804309

[2] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2794818

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