O encolhedor de NNTs

Isadora era uma mulher saudável com seus trinta e poucos anos. Por pressão de familiares, certo dia ela resolveu fazer o tal check-up. Não que sentisse algo ou que tivesse algum histórico familiar preocupante, pois ela estava ótima. Alimentava-se bem, fazia atividade física regularmente, não fumava, seu peso era ótimo e mantinha o estresse sob controle. Ainda assim, seus exames acusaram um colesterol um pouco acima do limite e o médico, assaz zeloso, sugeriu que ela usasse um medicamento para baixar o colesterol e reduzir seu risco de ter um infarto ou morrer por causas cardíacas. Ao ser questionado de maneira mais aprofundada – pois Isadora era bem esperta –, o médico confessou que em casos como o dela (prevenção primária em pessoas de baixo risco) este tipo de medicamento nem mesmo reduz o risco de morte, embora possa reduzir um pouquinho o risco de infarto. Ao ser questionado sobre o quanto seria este pouquinho, o médico secou a testa, consultou os dados no computador e disse que “se tratarmos 200 pessoas como você com este remédio por 5 anos, vamos evitar que uma delas sofra um infarto”. Isadora fez as contas, até pensou em perguntar sobre quem seria o felizardo entre tanta gente, mas preferiu ficar quieta.

Existe na medicina um conceito muito importante e algumas vezes esquecido: o número necessário para tratar ou NNT[1]. Este é o número de pessoas que precisam receber um tratamento para que se evite um desfecho ruim em uma dessas pessoas, o que nos dá uma boa ideia sobre o real valor das intervenções. Toda intervenção médica tem o seu NNT, embora em alguns casos isso não seja conhecido ou passe despercebido. Um NNT de 5, por exemplo, indicaria que precisamos tratar 5 pessoas com determinado medicamento para evitar um desfecho ruim em uma delas (enquanto uma delas evita o desfecho ruim por ter tomado o remédio, as outras não precisariam do remédio, pois não apresentariam o desfecho ruim mesmo sem o tratamento, enquanto algumas apresentariam o desfecho ruim mesmo tomando o remédio). Assim, conhecer o NNT das intervenções pode ser muito importante e é um dos fatores a serem ponderados ao discutirmos as possibilidades terapêuticas com os pacientes e instituirmos (ou não) as nossas intervenções. O grande problema – o que talvez nos leve a evitar essas discussões – é que os NNTs para diversas intervenções comuns em medicina costumam ser contados na casa das dezenas ou centenas e não das unidades.

O NNT para uma intervenção tão comum como o uso de medicamentos para reduzir o colesterol e diminuir o risco de infartos em pessoas de baixo risco é de mais de 200; o NNT para evitar um primeiro infarto com o uso de aspirina é de mais de 300; já o NNT para evitar um caso de gripe com a vacina para Influenza é de mais de 70; e assim por diante. Se fizermos o cálculo inverso, é fácil perceber que 99,5% (199/200) das pessoas de baixo risco que usam medicamentos para reduzir o colesterol como prevenção primária, 99,7% (299/300) das pessoas que usam aspirina para evitar um primeiro infarto e 98,6% (69/70) das pessoas comuns que se vacinam para influenza não têm qualquer benefício em nível individual. Este grau de ineficiência de nossas intervenções só não fica mais evidente em nosso dia a dia porque muitas pessoas que não apresentam o desfecho ruim (como o infarto ou a gripe) – e que não o apresentariam mesmo que não usassem a intervenção prescrita –, acabam acreditando que se beneficiaram com o remédio em nível individual, como se o benefício palpável de um único indivíduo fosse diluído entre todos.

É claro que na prática não temos como saber quem será o felizardo que se beneficiará com uma determinada intervenção e acabamos tendo que utilizar os medicamentos com as melhores intenções possíveis em um grande número de pessoas, mas é fácil perceber que estamos desperdiçando muitos recursos por aceitarmos que nosso padrão de cuidados admita NNTs enormes. Reconhecer o NNT de nossas intervenções não deve nos impedir de instituí-las quando forem realmente necessárias, mas deveria emprestar um pouco mais de sobriedade e parcimônia à nossa prática diária, reduzindo a pressa na instituição de intervenções de benefício duvidoso ou irrelevante.

Pode ser bastante frustrante para um profissional saber que a imensa maioria das pessoas que recebem suas intervenções não percebe nenhum benefício em nível individual, mas existem várias maneiras de reduzirmos o NNT na prática clínica e aumentar nossa eficiência e satisfação profissional. A forma mais fácil de fazer isso é dando prioridade ao tratamento das pessoas de maior risco, situação em que o NNT costuma ser bem menor. Um bom exemplo disso é o uso dos redutores de colesterol em pessoas de maior risco ou que já apresentam evidências de cardiopatia, quando então o NNT cai de mais de 200 para apenas 39. Sim, é verdade que ainda assim 97,5% (38/39) das pessoas que utilizam a droga não perceberiam benefício palpável em nível individual, mas esta é uma indicação praticamente indiscutível na medicina e NNTs tão baixos assim são bastante incomuns.

Outra maneira de reduzir NNTs é aumentar nosso nível de exigência na hora de realizar os estudos científicos. Como boa parte dos estudos que envolvem o uso de fármacos na prática clínica é realizada e/ou patrocinada pela indústria[2], a preocupação principal é a aprovação da droga para o maior número possível de pacientes. Assim, em vez de as pesquisas se concentrarem em pessoas de alto risco, mas que representam um mercado potencial pequeno, a indústria tende a realizar estudos com um grande número de pacientes de baixo risco, o que acaba gerando benefícios ínfimos para a população. Já dizia o grande Archie Cochrane há mais de 50 anos que “grandes estudos geram resultados estatisticamente significantes mas clinicamente irrelevantes”[3].

A verdade é que não existe um ponto de corte a partir do qual um NNT passa a ser “aceitável” e todas as nossas decisões também devem levar em conta outros fatores como a gravidade do desfecho em questão, o custo de nossas intervenções e, é claro, os valores e preferências de um paciente adequadamente informado. Ainda assim, esta “arte de encolher NNTs” passa a ser uma prerrogativa necessária para os profissionais quando lembramos que os recursos das pessoas e dos sistemas de saúde são finitos e que tamanha ineficiência acaba retirando recursos de onde eles podem ser mais importantes, além de minar a sustentabilidade de qualquer sistema de saúde em longo prazo. Em nível individual, reconhecer o tamanho um tanto exagerado de nossos NNTs pode nos ajudar a sermos um pouco mais humildes na hora de indicarmos nossas intervenções e também pode aumentar bastante a nossa empatia para com aquelas pessoas que optam por não utilizar determinados medicamentos. A julgar pela lógica dos NNTs, na maioria das vezes elas estarão cobertas de razão.


[1] https://thennt.com/

[2] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846#:~:text=Furthermore%2C%20of%20all%20funding%20for,currently%20comes%20from%20corporate%20sponsors.&text=In%20addition%2C%20scientists%20employed%20by,cost%2Deffectiveness%20of%20new%20drugs.

[3] Cochrane A. Effectiveness and efficiency: random reflections on health services.