O ouro já foi o rei dos metais e o metal predileto dos reis. Todo rei que se preze ostenta uma bela coroa de ouro na cabeça e uma quantidade muito maior guardada longe dos olhos do povo. É verdade que hoje existem poucos reis em atividade no planeta, mas nosso apego doentio ao nobre metal parece ser muito mais resistente que o apreço pelas monarquias. No final das contas, apenas trocamos os reis tradicionais por bilionários à paisana. A estabilidade do valor que atribuímos ao ouro é tanta que há muito tempo passamos a usá-lo como garantia para as transações comerciais. Criamos o chamado “padrão-ouro”, termo que a medicina tomaria emprestado da teoria econômica para se referir às melhores intervenções médicas disponíveis e com as quais as novas intervenções devem ser comparadas.

A linguagem popular também faz referências frequentes ao valor do ouro, como quando dizemos que uma pessoa está vendendo algo “a peso de ouro” quando queremos dizer que ela está cobrando um preço demasiadamente elevado pelo produto em questão. Fazemos isso porque o ouro foi por muito tempo o metal mais caro e desejado pelo homem. Na medicina, o ouro já foi usado até mesmo como recurso terapêutico. Durante muito tempo, aprendemos que o ouro era um tratamento adequado para doenças como a artrite reumatoide. Pode até parecer que o uso de ouro na forma de remédio seja coisa de reis ou bilionários que podem se dar ao luxo do desperdício de recursos, mas a verdade é que nossos medicamentos atuais são tão indecentemente caros, que algum dia teremos saudades do ouro medicinal.
Se o ouro serve como referência de valor e até mesmo como intervenção terapêutica, uma maneira interessante de atentarmos para o custo indecente dos novos medicamentos é compará-los com o seu peso em ouro. Sabemos que o preço de um grama (1 g) de ouro é de cerca de R$ 300,00. Assim, um miligrama (1 mg) do mais nobre metal custaria cerca de R$ 0,30. Para se ter uma ideia de quão indecentemente caros são os novos medicamentos lançados pela indústria, podemos começar pelos novos tratamentos propostos para a doença de Alzheimer. Cada miligrama de aducanumabe[1] custa cerca de R$ 15,00, o que representa um custo 50 vezes maior que o do ouro. É certamente um luxo usar um medicamento 50 vezes mais caro que o ouro, ainda mais quando não existem quaisquer dados que justifiquem o seu uso amplo em termos de benefícios clínicos relevantes para as pessoas tratadas. Podemos também analisar o caso do adalimumabe, tratamento biológico usado na mesma artrite reumatoide outrora tratada com ouro e um dos remédios que mais geraram lucros na história da indústria farmacêutica. O preço do miligrama de adalimumabe[2] é de R$ 180,00, o que é cerca de 500 vezes mais caro que o rei dos metais e é extremamente caro mesmo para um medicamento que traga benefícios clinicamente relevantes.

As próprias “canetas emagrecedoras” – que, embora ofereçam efeitos individuais temporários, jamais seriam a solução para a epidemia de obesidade que assola a humanidade – chegam a custar quase 5.000 vezes mais caro que o ouro (R$ 1.220,00 por miligrama)[3]. No caso de alguém ainda não estar estupefato ou até mesmo francamente revoltado com a situação, analisemos o preço cobrado pelo vosoritide[4], uma droga usada em casos de nanismo acondroplásico e que tem um preço exorbitante de nada menos que R$ 17.000,00 por miligrama, o que o torna 50.000 vezes mais caro que o ouro. Longe de ser a solução para o problema do nanismo – os estudos clínicos[5] mostraram que os pacientes que usaram a droga cresceram apenas cerca de 1 cm a mais por ano de tratamento em comparação com quem não a usou –, o seu uso pode significar um custo de cerca de R$ 1.000.000,00 por centímetro ganho. Isso tudo sem falar nas terapias genéticas que estão chegando a um custo de milhões de dólares por uma única dose![6] A esta altura, já está bem demonstrada a ganância revoltante da indústria e a ameaça real de insustentabilidade de nossos sistemas de saúde em um futuro bem próximo.
Como iniciamos a reflexão falando do ouro e de seu uso como referência para outros tipos de riquezas, talvez seja interessante fazer algo semelhante em relação a algumas dessas drogas estupidamente caras. Imagine se criássemos mecanismos que nos permitissem utilizar de forma mais criativa o valor exorbitante que atualmente é gasto em drogas muitas vezes inúteis. Em vez de gastarmos cerca de R$ 20.000,00 por mês (valor que não inclui os custos indiretos com exames, etc.) com essas novas drogas para tratamento de Alzheimer, poderíamos habilitar esses pacientes e suas famílias para ganharem algo como uma “bolsa-demência” (com valor semelhante ou uma fração dele!), a qual poderia ser usada na contratação de cuidadores, em gastos com profissionais de saúde (como fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, etc.), na adaptação de suas casas (camas hospitalares, banheiros adaptados, etc.), em dietas especiais e na ajuda a familiares próximos para que pudessem reduzir seu trabalho externo e passar mais tempo em casa cuidando de seu familiar. Da mesma forma, os muitos milhões gastos na conquista de poucos centímetros a mais com o vosoritide (o que pode parecer importante em nível individual, mas de forma alguma resolveria os principais desafios enfrentados pelas pessoas com nanismo) talvez fossem aplicados de forma muito mais hábil na adaptação de moradias, na garantia de condições de trabalho adequadas, em programas de acessibilidade e na educação da população sobre a abordagem da condição.
É lógico que nada disso mudará enquanto continuarmos permitindo que a própria indústria farmacêutica realize os estudos “científicos” que pautam as nossas decisões. Também não veremos nenhum progresso significativo enquanto esta mesma indústria mantiver ligações perigosas com políticos e outros formadores de opinião e puder definir livremente o preço escorchante de seus mimos terapêuticos. Por algum motivo – o que inclui campanhas maciças de lavagem cerebral perpetradas pela mídia sobre os cidadãos e pela indústria sobre os profissionais de saúde – achamos adequado gastar verdadeiras fortunas em tratamentos que trazem pouco ou nenhum benefício para as pessoas, mas estranhamos a possibilidade de gastar uma quantia significativamente menor em outros recursos que poderiam trazer benefícios imensamente mais relevantes para as pessoas. Imagine só a diferença que faríamos na vida dessas pessoas e familiares de doentes com Alzheimer se, em vez de gastarmos mais de R$ 20.000,00 por mês em uma droga até onde sabemos inútil como o aducanumabe, gastássemos a metade disso em uma “bolsa-demência” de R$ 10.000,00 mensais! Quem considera essa ideia esquisita, deveria achar ainda mais estapafúrdia a ideia de gastar o dobro em uma droga inútil.

Mais do que sugerir soluções simplistas, esta reflexão deveria servir para refrescar nossas ideias sobre custos exorbitantes, benefícios desproporcionalmente pífios e maneiras criativas de melhorarmos a vida das pessoas e, ainda assim, economizarmos fortunas e defendermos a sustentabilidade dos sistemas de saúde. E o papel que nós, médicos, temos nesse sistema é fundamental, seja por atuarmos como gatekeepers que controlam a entrada de intervenções novas que sejam inúteis ou indecentemente caras ou por servirmos como educadores para todas as pessoas dentro do sistema. É evidente que, com o andar atual da precificação dos novos medicamentos, os sistemas de saúde serão gradualmente desmantelados, como de fato já parece estar acontecendo no mundo todo. Enquanto não recuperarmos a altivez – o que pressupõe nossa independência e honestidade ao lidar com essas questões – não poderemos enfrentar os interesses poderosos daqueles que lucram com essas inconsistências na área da saúde. Enquanto não compreendermos que essa conta impagável é cobrada de todos nós na forma de impostos e de mensalidades altíssimas em planos de saúde de um sistema que luta para se manter de pé, pouco avançaremos. Enquanto não entendermos que uma substância qualquer não pode custar 50 mil vezes o seu peso em ouro, não teremos como salvar o sistema e todos que dele dependem.

[1] https://investors.biogen.com/news-releases/news-release-details/biogen-announces-reduced-price-aduhelmr-improve-access-patients
[2] https://lojavirtual.oncoexpress.com.br/produto/comprar-humira-40mg-0-8-ml-frasco-ampola-abbvie/
[3] https://www.panvel.com/panvel/ozempic-1mg-3ml-134-mg-ml-c-1-sistema-de-aplicacao-4-agulhas-descartaveis/p-116907
[4] https://www.precomedicamentos.com.br/medicamentos/voxzogo-04mg-caixa-10-frascos-com-po-solucao-com-05ml-de-diluente
[5] https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31541-5/fulltext
[6] https://www.pharmamanufacturing.com/development/drug-approvals/article/33006956/most-expensive-drugs