Privatizar a ciência é sempre um escândalo

Recentemente, o meio científico ficou chocado ao saber das intenções explícitas do candidato a presidente mais à direita nas eleições argentinas que se aproximam. Com seu visual que mistura um egresso de manicômio com um cantor de rock britânico em plena ressaca, Javier Milei já avisou que pretende não apenas privatizar a ciência, mas também fechar o Ministério da Saúde do país vizinho. Todos nós sabemos o mal que um maluco pode fazer a uma nação. Também sabemos que pessoas e países à beira do abismo costumam acreditar em soluções mágicas. A questão é saber o porquê de essa declaração de Milei ter chegado às páginas dos principais periódicos científicos especificamente agora[1].

A Ciência – com letra maiúscula, verdadeira, honesta e imparcial! – é uma das grandes conquistas da humanidade. Ela representa uma maneira importante pela qual podemos conhecer os fenômenos da natureza ou simplesmente saber se uma intervenção médica é benéfica ou não para as pessoas. Porém, ela é também uma ferramenta muito poderosa, a qual pode ser usada a favor ou contra os interesses da humanidade conforme quem detenha o poder sobre ela. É por isso que a ideia de uma privatização da Ciência causa espanto e mal-estar entre as pessoas sensatas. Tais pessoas acreditam que a Ciência é um bem público da maior importância que jamais deveria ser entregue aos interesses corporativos privados e que deve ser usado em benefício da humanidade. É aqui que as coisas começam a se complicar.

Na prática, a área da pesquisa clínica na medicina já foi privatizada há várias décadas sem muito alarde ou manifestações de repúdio por parte de médicos ou do establishment científico. Não é segredo para ninguém que 75%[2] das pesquisas clínicas na área da medicina são patrocinadas e delineadas pela própria indústria que produz os medicamentos ou equipamentos médicos e que, portanto, tem muito a ganhar se os resultados das pesquisas beneficiarem os seus produtos. Convenhamos que os bilhões de dólares que estão em jogo, e que dependem do resultado dos estudos, são capazes de enviesar qualquer pesquisa mesmo antes de ela começar, representando o calcanhar de Aquiles da ciência biomédica atual. Para piorar as coisas, esse número de 75% pode ser ainda maior se considerarmos apenas as pesquisas publicadas nos principais periódicos científicos e que embasam a maioria de nossas decisões clínicas diárias. O próprio David Sackett, “pai” da Medicina Baseada em Evidências já tinha manifestado[3] sua tristeza em relação a essa verdadeira “prostituição” da ciência e deve estar se revirando no túmulo a essa hora. É evidente que este é um escândalo muito maior do que o já previsível plano de Milei para privatizar a Ciência.

Em algum momento das últimas décadas, a indústria começou a patrocinar e controlar a produção científica na área da saúde. O que aconteceu depois disso era previsível. Com o dinheiro investido pela indústria chegando em volumes crescentes a instituições acadêmicas e centros de pesquisa, as fontes de financiamento públicas e independentes foram gradualmente secando ou atrofiando. Algumas poucas que sobraram, se concentraram nas pesquisas pré-clínicas, as quais interessam bem menos à indústria. O resultado foi a nossa dependência crescente deste dinheiro da indústria para a realização de coisas tão básicas como avaliar de forma imparcial se as nossas intervenções médicas são realmente benéficas ou nos reunirmos em congressos e simpósios para a discussão crítica dessa literatura científica. Se isso não é a privatização da Ciência, não sei o que poderia ser.

Uma parte do establishment científico parece estar confortável vivendo sob a chuva de dólares da indústria. Isso inclui periódicos médicos patrocinados pela indústria e instituições acadêmicas ou centros de pesquisas que recebem financiamentos polpudos para realizar estudos cujo delineamento enviesado garante o resultado pretendido pelos novos mecenas da ciência. É claro que dentro dessas instituições existem muitos pesquisadores honestos querendo mudar a situação, mas não vemos muitos deles se manifestando abertamente sobre o tema. Enquanto isso não acontecer, continuaremos usando medicamentos de gosto duvidoso aprovados unicamente em testes realizados pela própria indústria e com preços indecentes que põem em risco os pacientes e os próprios sistemas de saúde que deveríamos proteger.

Privatizar a Ciência é certamente um escândalo, mas, no caso da ciência médica, este é certamente um escândalo já requentado. Há algumas décadas, o sábio Saramago falava de uma tal “cegueira branca” que pairava sobre a humanidade e que nos impedia de enxergar as coisas por mais que estivessem dispostas à nossa frente. O mestre português dizia que somos todos “cegos que vendo, não veem”. Na área da ciência médica estamos todos muito cegos sem qualquer sombra de dúvida. Deixamos que a indústria controle aquilo que é o centro vital de nossa profissão, mesmo sabendo que isso deturpa a própria Ciência e coloca em risco a saúde das pessoas, a sustentabilidade dos sistemas de saúde e a própria medicina. A verdade é que somos todos cegos. Cegos e loucos.


[1] https://www.nature.com/articles/d41586-023-03191-3

[2] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846

[3] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC300797/