Ensaio sobre a hiperstição médica

O conhecimento de outras áreas do saber pode ser muito útil a quem pratique a arte da medicina. Sabemos que os médicos precisam ter um conhecimento amplo que vá muito além da própria medicina. Quando Abel Salazar dizia que “o médico que só sabe medicina, nem medicina sabe”, era a isso que ele se referia. Além de todo o conhecimento técnico da medicina, ter uma formação humanística ampla – o que pode incluir filosofia, artes e tantas outras “humanidades” – permite que o profissional compreenda melhor os problemas das pessoas e a própria evolução da medicina.

Um conceito recente e que pode ser muito interessante para a medicina moderna é o da “hiperstição”. A teoria desenvolvida pelo filósofo contemporâneo Nick Land trata daquelas ideias que criam a sua própria realidade no meio cultural onde se encontram. A hiperstição seria uma manifestação análoga à nossa conhecida ideia das “profecias autorrealizáveis”. Um ponto importante para que a hiperstição exista é que a ideia em questão deve ganhar aceitação e ter força suficiente para poder criar a si mesma como realidade no futuro. Um exemplo comumente citado é o do mercado financeiro. Imagine que um investidor influente no mercado de ações cria a ideia de que uma empresa X está enfrentando dificuldades, dissemina essa informação e passa a vender todas as ações de tal empresa. Isso pode gerar um efeito cascata no mercado, fazendo com que as outras pessoas também vendam as ações da empresa X, o que pode levá-la à bancarrota independentemente de ela realmente estar em dificuldade. Existiriam situações parecidas na medicina?

A hiperstição no diagnóstico

O diagnóstico médico não é sempre tão exato como desejamos ou costumamos acreditar. Muitas vezes o diagnóstico é feito de forma apressada ou incerta e pode não refletir a realidade da saúde daquela pessoa. O problema começa ao percebermos que as palavras do médico são extremamente poderosas e continuarão influenciando o paciente por muito tempo. Uma mulher que procure um médico por artralgias relacionadas a alguma infecção viral e que por uma infelicidade do destino seja submetida a um teste de FAN que gere resultado ligeiramente positivo (com enorme probabilidade de ser clinicamente irrelevante) pode passar o resto da vida acreditando ser portadora de alguma doença reumatológica grave (e recebendo tratamento para isso!). O mesmo pode acontecer com alguém que passe por uma fase temporária de tristeza ou euforia relacionadas a uma determinada circunstância de sua vida e que receba um diagnóstico de doença mental como transtorno depressivo ou transtorno de humor bipolar. O diagnóstico atribuído pode influenciar o seu comportamento no futuro e até mesmo “empurrar” a pessoa para dentro do conjunto de critérios de algum transtorno mental que ela inicialmente não tinha.

A hiperstição na ciência

No modelo atual de Fast Science, a hiperstição se manifesta toda vez que novos medicamentos são aprovados de forma apressada pelas agências reguladoras e os profissionais passam a adotá-los de maneira afobada, sem permitir o tempo necessário para que novos estudos confirmatórios sejam realizados ou para que seus eventuais danos sejam conhecidos. Além disso, quando um medicamento passa rapidamente a ser o novo “padrão de cuidados” em determinada situação clínica, fica muito difícil realizar estudos confirmatórios baseados em comparações com placebo ou com o tratamento habitual prévio. Na prática, esses novos estudos nunca são realizados, e o que vemos é que a ideia de que aquele novo medicamento aprovado às pressas era melhor do que os tratamentos anteriores passa a ser a nova realidade terapêutica simplesmente por não termos tido a oportunidade de comprovar o contrário.

A hiperstição no rastreamento

Toda vez que reduzimos a idade mínima para a realização de um determinado tipo de rastreamento, a hiperstição pode se manifestar. Imagine que a idade mínima para o rastreamento do câncer de próstata, de cólon ou de mama seja de 50 anos. Há pressões de todo lado para reduzir esta idade mínima para 45 ou até mesmo para 40 anos. A simples redução da idade mínima de rastreamento fará com que mais casos da doença em pessoas jovens sejam detectados, o que parece “comprovar” a tese inicial de que deveríamos realmente reduzir a idade mínima para o rastreamento e pode até mesmo levar a recomendações de redução adicional da idade mínima para a realização dos exames. O problema é que a redução da idade mínima para o rastreamento pode desequilibrar a relação entre danos e benefícios, trazendo prejuízos para as pessoas e para os sistemas de saúde.  

A hiperstição no tratamento

Além da hiperstição que se manifesta no caso das intervenções medicamentosas, ela pode ser especialmente comum em procedimentos e técnicas invasivas. A ampla adoção de uma nova intervenção invasiva ou técnica cirúrgica pode fazer com que as formas de intervenção anteriores sejam gradualmente abandonadas, até o ponto em que os profissionais deixam de ter a habilidade necessária para realizá-las adequadamente, reduzindo sua eficácia e “comprovando” a tese inicial de que a nova intervenção era melhor que as anteriores. Imagine que uma nova técnica cirúrgica tenha sido desenvolvida e seja aclamada como melhor que as anteriores. Com o tempo, os cirurgiões passam a dedicar cada vez mais tempo à nova técnica, gradualmente perdendo habilidade com as técnicas cirúrgicas tradicionais. Isso por si só pode fazer com que a nova técnica passe a ser melhor que as anteriores, não tanto por ser inicialmente melhor, mas porque os cirurgiões, enquanto grupo, perderam muitas de suas habilidades com as técnicas tradicionais.

A hiperstição e as tecnologias

Quando empresas poderosas querem colocar uma nova tecnologia dentro do escopo da prática clínica, elas não medem esforços e não economizam investimentos. Uma das tecnologias que se aproveitaram de um momento muito particular da história para adentrar o ambiente clínico foi a telemedicina. A tecnologia da telemedicina per se pode ser positiva quando usada de forma parcimoniosa como um complemento da atividade médica, mas a premissa por trás de sua adoção mais ampla é de que ela pode ser pelo menos tão boa quanto as consultas presenciais em que médicos e pacientes de carne e osso se encontram. Porém, a ampla e rápida adoção dessa tecnologia que afasta fisicamente médicos e pacientes traz consigo o risco de que, cada vez mais profissionais passem a adotá-la, perdendo habilidades cruciais para a boa prática clínica, como a realização de um bom exame físico ou a detecção de detalhes de comunicação – como a linguagem corporal ou sutilezas da voz – que só podem ser percebidos em uma consulta presencial. Com o tempo, é muito provável que estes novos profissionais percam boa parte de suas habilidades técnicas e humanas e realmente não sejam muito melhores ao vivo do que em uma consulta de telemedicina, o que “comprovaria” a tese inicial da superioridade ou de não inferioridade das teleconsultas.

A hiperstição e a “inteligência artificial”

Uma das maiores bobagens da medicina atual é aceitar a forma como estão sendo realizadas as comparações entre médicos e máquinas. Em vez de compararmos as máquinas com os médicos em seu hábitat normal (o consultório ou a beira do leito), médicos e máquinas estão sendo comparados em chats de computador ou em outro tipo de mensagens de texto, como se esta fosse a forma habitual de comunicação dos médicos de carne e osso. Em vez de as máquinas subirem ao nosso nível, estamos nos rebaixando ao nível delas, trocando toda a riqueza da comunicação humana por algumas palavras escritas em uma tela. Isso é como se comparássemos peixes e coelhos para saber quem corre mais rápido em terra firme. Assim como a terra firme não é o hábitat dos peixes, também o mundo virtual não se presta para a boa atividade médica. Profissionais de carne e osso se comunicam por meio da palavra falada, da maneira de caminhar e de sentar-se, do aperto de mão, de abraços, da palpação do corpo do paciente, de sorrisos e choros, podendo fazer tudo isso no mesmo encontro. É evidente que a indústria de tecnologia se aproveita de nossa insensatez e está cuidadosamente criando essa triste narrativa de que máquinas podem ser tão boas quanto médicos humanos. E, no fundo, o simples fato de aceitarmos ser testados em um ambiente virtual já “comprovaria” a tese dessa indústria.

Conclusão a título de reflexão

A ideia básica dessa reflexão é atentarmos para a forma como as inovações surgem e se consolidam na medicina. Algumas mudanças são muito boas e positivas, mas a pressa em adotá-las não parece justificada na imensa maioria dos casos. Apesar de haver grandes avanços na medicina moderna, algumas vezes essas mudanças são causadas por fatores alheios ao mérito intrínseco das novas intervenções. Precisamos perceber que interesses econômicos poderosos podem distorcer a nossa percepção e determinar o sucesso de intervenções que algumas vezes não acrescentam nada além de custos adicionais ao sistema de saúde. Da mesma forma que um megainvestidor tem “peso” suficiente no mercado para criar uma realidade que seja adequada aos seus interesses especulativos, também as grandes corporações que dominam a medicina são suficientemente poderosas para exercer pressão em pontos estratégicos a fim de distorcer a “verdade” em seu favor e lucrar muito com seus produtos. O conhecimento de teorias diferentes e criativas – como o conceito de hiperstição – pode mudar a forma como nós médicos pensamos e aumentar nossa capacidade de defender a saúde dos pacientes, o sistema de saúde e a própria medicina.