Um estudo publicado recentemente no BMJ[1] traz uma extensa análise sobre os efeitos nocivos da ingesta de alimentos ultraprocessados sobre a saúde humana. Para os propósitos da análise, os exemplos de alimentos ultraprocessados são coisas como salgadinhos, refrigerantes, macarrão instantâneo e alimentos prontos para o consumo. Embora fossem mais do que esperados, os resultados do estudo são impressionantes: a ingesta habitual de alimentos ultraprocessados aumenta o risco de doenças cardiovasculares, de obesidade, de câncer, de diabetes e de doenças mentais, entre vários outros males. Como se isso não fosse suficiente, este hábito moderno de ingerir porcarias pseudoalimentícias aumenta até mesmo o risco de morte precoce por doenças cardiovasculares ou por qualquer outro tipo de doença.
Dito de outro modo: o hábito moderno de ingerir alimentos ultraprocessados está nos matando e adoecendo. E não se deve imaginar que o aumento de risco demonstrado no estudo é algo trivial. Para se ter uma ideia, a mortalidade relacionada a doenças cardiovasculares aumentaria em nada menos que 50% entre as pessoas que ingerem habitualmente alimentos ultraprocessados em comparação com aquelas que buscam ingerir alimentos mais naturais ou pouco processados. Além disso, o risco de doenças mentais aumentaria em cerca de 50%, o risco de obesidade aumentaria em 50%, o risco de diabetes aumentaria em 40%, o risco de câncer aumentaria em cerca de 10% e o risco de mortalidade geral aumentaria em mais de 20%. Convenhamos que se empanturrar de porcarias está longe de ser algo recomendável.

O estudo analisou todas as revisões sistemáticas e metanálises existentes sobre o assunto, o que abrangeu estudos de caso-controle, de coorte e transversais. Sempre haverá aqueles que digam que estudos não randomizados são incapazes de comprovar muita coisa, mas deve-se ter em mente que, na prática, é bastante difícil realizar grandes estudos prospectivos e randomizados de longo prazo sobre intervenções na dieta. Além disso, tal dificuldade se transforma em impossibilidade quando se trata de estudar seus efeitos nocivos, uma vez que nenhuma comissão de ética aprovaria um tal estudo. Por outro lado, deve-se recordar que, se não fossem os bons estudos retrospectivos e a coragem e persistência de pesquisadores como Bradford Hill[2], os malefícios do tabagismo não teriam sido demonstrados, as pessoas seguiriam fumando como loucas e morrendo horrendamente por câncer de pulmão ou enfisema e os médicos talvez seguissem fazendo propaganda de cigarros até hoje.

O que mais chama a atenção no estudo descrito é a magnitude do aumento do risco e o fato de ele ser dose-dependente, ainda mais se considerarmos a onipresença dos alimentos ultraprocessados na dieta ocidental. Para se ter uma ideia, na dieta de um americano médio, mais da metade das calorias (58%) são obtidas a partir de alimentos ultraprocessados, o que pode ajudar a entender o paradoxo de os EUA serem um país rico e cada vez mais gordo e doente. Um hábito que aumenta em 50% o risco de morte por doenças cardíacas deve ser levado muito a sério e combatido, uma vez que isso poderia representar milhões de mortes todos os anos no mundo todo. Se fosse possível fazer uma transposição direta dos achados do estudo para a realidade brasileira onde a ingesta de ultraprocessados representa “apenas” cerca de 20% das calorias[3] e onde morrem cerca de 1,5 milhões de pessoas por ano, a maioria delas por doenças cardiovasculares ou câncer, ainda assim o hábito de ingerir alimentos ultraprocessados poderia ser responsável por muitos milhares de mortes anuais.
Para se ter uma ideia da importância desses achados, os medicamentos que reduzem o colesterol (estatinas), que são os medicamentos mais usados para evitar infartos e mortes por doenças cardíacas, reduziriam esse risco em cerca de 25%. Em outras palavras, o dano cardiovascular produzido pela ingesta de alimentos ultraprocessados é de grandeza duas vezes superior aos benefícios dos medicamentos usados para evitar essa mesma condição, o que faz com que o nosso hábito de tomar remédio e seguir comendo porcarias seja contraproducente e mais do que discutível. É bem possível até mesmo que essa bizarrice comportamental nos esteja levando a aumentar a prevalência de doenças cardiovasculares em vez de diminuí-la.

O mesmo raciocínio vale para todas as outras condições clínicas que são cada vez mais comuns no mundo moderno e cuja prevalência aumenta com a ingestão de alimentos ultraprocessados, como os vários tipos de câncer, as doenças mentais, a obesidade e o diabetes. Tratar essas doenças com medicamentos sem mudar a alimentação da população pode estar sendo altamente contraproducente. A boa notícia é que abandonar as porcarias ultraprocessadas poderia trazer benefícios para a saúde bem maiores do que os medicamentos atualmente usados, o que nos economizaria não apenas o gasto com as porcarias ultraprocessadas, mas também uma fortuna em gastos com medicamentos que passariam a ser desnecessários. No caso das doenças cardiovasculares e onde a proporção de ultraprocessados ingeridos é alta, se fosse possível acabar de uma só vez com a ingesta de alimentos ultraprocessados, o benefício seria provavelmente muito maior do que se medicássemos toda a população com estatinas, como já foi proposto por alguns analistas afoitos. Como diria Kurt Vonnegut: é assim mesmo!
A questão que se impõe é: se uma intervenção como a eliminação dos alimentos ultraprocessados pode ter benefícios assim tão evidentes, então por que a humanidade ainda não se livrou deles ou pelo menos limitou radicalmente o seu consumo e segue permitindo que eles estejam presentes em suas casas e até mesmo nas cantinas escolares? Simplesmente porque há muita gente enriquecendo com a produção e venda dessas porcarias, dentro e fora da indústria de alimentos. É preciso lembrar que outras indústrias, como a indústria farmacêutica e de dispositivos médicos, também se beneficiam muito com a manutenção do hábito de ingerir porcarias ultraprocessadas e não têm nenhum interesse em mudar absolutamente nada. Além disso, o dinheiro da indústria de alimentos ultraprocessados (a Big Food) irriga intensas campanhas de lobby direcionadas aos políticos[4] e às próprias associações médicas[5] que deveriam combater seus excessos.

Existem também aqueles que defendem que as pessoas têm o direito de fazer suas escolhas e, para isso, elas deveriam ter total liberdade, o que tem algum fundo de verdade. O problema é que essa opção de se empanturrar de alimentos ultraprocessados não é algo natural do ser humano, mas sim um hábito que nos foi incutido de forma sub-reptícia por uma indústria gananciosa e por campanhas de marketing cuidadosamente desenvolvidas para continuarmos ingerindo essas porcarias maléficas diariamente. Falar em livre arbítrio neste caso é um pouco como acreditar que um dependente químico recai no vício por livre e espontânea vontade, e não por alguma razão alheia à sua disposição mais íntima e que seja mais forte que ele próprio.
Ortega y Gasset dizia que a vida humana se baseia no reconhecimento de nossas circunstâncias e na tomada diária de decisões que representam a nossa liberdade de escolha e cujas consequências precisam ser enfrentadas de forma responsável tanto em nível individual como em sociedade. Nossas circunstâncias aí estão, representadas pela onipresença de alimentos maléficos em proporções maiores ou menores na dieta ocidental básica. Somos livres para decidir o caminho que vamos escolher daqui para frente. Cabe a nós todos – e, de forma ainda mais aguda, à comunidade médico-científica – utilizar os achados das recentes pesquisas para mudar positivamente o hábito alimentar das pessoas e reduzir as taxas crescentes de todas essas condições descritas no estudo, da mesma forma que tivemos coragem de fazer no caso do tabagismo quando ousamos enfrentar a poderosa indústria do tabaco. Sempre foi óbvio que a ingesta de alimentos ultraprocessados era nociva, e isso agora está adequadamente demonstrado. Também a ideia de que mudar os hábitos da população é mais vantajoso para a humanidade a longo prazo do que gastar fortunas em tratamentos medicamentosos é ainda mais do que óbvia, chegando a ser ululante. Será trágico se mais uma vez sucumbirmos aos interesses econômicos e permitirmos este verdadeiro massacre representado pelo hábito insalubre e insano de ingerir alimentos ultraprocessados em excesso.

[1] https://www.bmj.com/content/384/bmj-2023-077310
[2] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2038856/
[3] https://www.scielosp.org/article/rsp/2023.v57/12/pt/
[4] https://www.fooddive.com/news/where-the-dollars-go-lobbying-a-big-business-for-large-food-and-beverage-c/607982/
[5] https://www.nytimes.com/2016/10/10/well/eat/coke-and-pepsi-give-millions-to-public-health-then-lobby-against-it.html
Um comentário em “O óbvio, o ululante e o trágico”
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