A medicina está passando por uma crise e o atual encantamento pelas terapias alucinógenas como panaceia para todo tipo de sofrimento humano pode ser apenas mais um sintoma dessa triste realidade. Isso não significa dizer que as terapias alucinógenas não possam ajudar as pessoas em situações clínicas específicas, mas seus eventuais benefícios parecem estar sendo exagerados por diversos interesses pouco científicos que podem ter mais a ver com questões pecuniárias do que com uma real preocupação com a saúde das pessoas. Além disso, essa visão das drogas alucinógenas como panaceia terapêutica dificilmente seria positiva para a medicina e a sociedade. Por um lado, se ela for apenas uma criação perversa daqueles que desejam lucrar com essa narrativa, isso mostra que a medicina está cada vez mais vulnerável às soluções mágicas, por mais esdrúxulas que sejam. Por outro lado, se ela estiver correta e as drogas alucinógenas forem mesmo a solução para tantas formas de sofrimento, então nosso problema se torna ainda maior, pois ficaria evidente que os rumos que escolhemos para a humanidade nos trouxeram tanta dor e infelicidade que a melhor saída seria fugir da realidade com o uso amplo de drogas alucinógenas.

O uso de alucinógenos como ferramenta terapêutica não é exatamente novo. Os canabinoides são (pouco) usados há décadas como terapia para alguns tipos de epilepsias refratárias, espasticidade, anorexia e outros problemas clínicos bem específicos. O que há de novo no panorama médico é a ideia de ampliarmos muito as indicações e usarmos como ferramentas terapêuticas algumas drogas que sempre fizeram parte do imaginário popular como substâncias de uso e abuso recreativo, como o ecstasy, a psilocibina (cogumelos alucinógenos) ou a escetamina. Essas drogas têm sido usadas há décadas em ambientes recreativos para se alcançar um estado de prazer e euforia ou simplesmente para se realizar uma “viagem alucinógena”. Embora o uso esporádico em nível individual possa ser uma questão pessoal a ser abordada caso a caso e não se trate, necessariamente, de um problema médico, o amplo reconhecimento desse tipo de terapia como benéfico pela comunidade médico-científica pode ter profundo impacto na sociedade e deveria se basear – exatamente por se tratar de drogas antigas cujos efeitos nocivos são bastante conhecidos – no mais alto nível de rigor científico, e é aqui que as coisas começam a se complicar.
Existe um interesse econômico enorme no sucesso dessa narrativa das drogas alucinógenas como panaceia terapêutica. Em primeiro lugar, já existe todo um mercado financeiro baseado em fundos de investimento que aplicam seus recursos nas empresas que produzem a matéria-prima para as diversas terapias canabinoides[1]. Além disso, seguindo o caminho trilhado pela indústria farmacêutica e, ainda antes dela, pela indústria do tabaco[2], a indústria da maconha e dos canabinoides está apostando alto no financiamento da academia médica e das pesquisas clínicas[3], o que certamente não ajuda em nada na criação de um ambiente de maior credibilidade, o qual é tão fundamental para a prática da boa ciência.

Para piorar a situação, a imagem acima ilustra a desconfortável situação representada por pesquisadores que detêm as patentes de drogas relacionadas com aquelas que eles próprios estão testando em ensaios clínicos[4]. É importante lembrar que as declarações de conflitos de interesse surgiram como forma de diferenciar entre as pesquisas mais isentas e desenvolvidas por pesquisadores independentes daquelas mais nebulosas cujos pesquisadores estão comercialmente envolvidos com as drogas testadas. Essa exigência de transparência imposta pelos periódicos científicos só tem valor se ela visar coibir abusos e aumentar a imparcialidade e a independência das pesquisas, caso contrário ela apenas implode a credibilidade da ciência e transforma essas declarações em verdadeiras ostentações dos conflitos de interesses.

Para quem imagina que as coisas não podem piorar ainda mais, existem situações ridiculamente desonestas, como no exemplo acima, em que o próprio C.E.O. de uma empresa que vende produtos e serviços relacionados a terapias alucinógenas publica um artigo supostamente científico sobre a psilocibina e declara não ter nenhum conflito de interesse relacionado ao tema. Se a ciência não parece tratar com a devida seriedade a questão, não se pode esperar muito dos profissionais que dela se beneficiam diretamente, o que é ilustrado pela existência de clínicas da famigerada “medicina integrativa” especializadas em infusões de cetamina e cujo leque de indicações mostrado na imagem abaixo é tão amplo que só parece deixar de fora um eventual diagnóstico de “transtorno de vergonha alheia”.

Se a exigência de rigor científico deve ser alta para todos os novos medicamentos testados nos ensaios clínicos, este rigor deveria ser ainda maior no caso de drogas com alto potencial de dano em nível individual e da sociedade. O problema é que existem vários indícios de que tem havido pouco rigor na análise e publicação dessa literatura científica que envolve as drogas alucinógenas. Um artigo recente[5] aponta vários exemplos de redução dos padrões mínimos de rigor científico para a publicação dos estudos, além de afirmações exageradas feitas pelos pesquisadores sobre eventuais benefícios dessas drogas alucinógenas as quais não encontram apoio nas próprias pesquisas publicadas por estes mesmos pesquisadores.
Mas a coisa pode ficar ainda mais complicada, pois a recente liberalização dos cuidados médicos administrados à distância por meio da chamada “telemedicina” mostra precedentes perigosos. Recentemente, a indústria farmacêutica que produz as “canetas milagrosas que emagrecem” criou mecanismos para vender seus produtos diretamente aos consumidores sem a necessidade de suas drogas serem prescritas pelos médicos que tratam pessoalmente dos doentes[6]. Parte da justificativa para essa venda direta ao consumidor seria a facilitação do acesso (vendas online com entrega a domicílio), a redução de custos (não haveria honorários médicos envolvidos) e a preservação da privacidade dos doentes (que são atualmente vistos como estigmatizados)[7]. É assustador pensar no que poderia acontecer se a mesma lógica perversa fosse aplicada a uma eventual venda de drogas alucinógenas diretamente ao consumidor.
A sanha atual para emplacar as drogas alucinógenas como panaceia terapêutica e criar até mesmo uma “medicina canabinoide” ou “medicina baseada em alucinógenos” pode ter interesses que vão muito além da boa ciência médica e do altruísmo terapêutico. Além disso, se considerarmos que a probabilidade a priori de que essas drogas sejam altamente efetivas contra muitas das indicações clínicas alardeadas é bastante baixa, qualquer eventual resultado positivo que seja publicado deve ser visto com cautela como possível produto de publicação seletiva, erro aleatório ou delineamento tendencioso. Nesses casos, em vez de se alardear novas curas milagrosas, o bom senso sugere a replicação dos resultados em estudos maiores, mais adequados e independentes.
Enfim, seria ótimo se existisse uma panaceia terapêutica que servisse a todos os males, mas nós já deveríamos estar vacinados contra essas soluções mágicas. Também seria bom se as drogas alucinógenas algum dia se mostrassem, em estudos realizados e repetidos por pesquisadores honestos e independentes, claramente efetivas e seguras para várias dessas indicações clínicas hoje alardeadas. Mas até que isso aconteça, o que teremos é uma medicina alucinada para resolver problemas que muitas vezes têm origem em questões sociais e existenciais ou simplesmente são insolúveis, uma indústria enlouquecida para lucrar o máximo e o mais rapidamente possível e pacientes baratinados no meio dessa confusão toda sem saber por que diabos não melhoram se essas drogas foram apresentadas a eles como a solução mágica para seus problemas. No final das contas, parece que estamos todos malucos. Tão doidos que nem precisaremos de alucinógenos.

[1] https://etfdb.com/themes/marijuana-etfs/
[2] https://www.nature.com/articles/nm0299_125
[3] https://www.statnews.com/2020/02/03/cash-from-cannabis-companies-creates-conflicted-researchers/
[4] https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2782994
[5] https://www.cambridge.org/core/journals/psychological-medicine/article/is-good-science-leading-the-way-in-the-therapeutic-use-of-psychedelic-drugs/F3FDF49E14AAF4D12036BFFC047357B4
[6] https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/lilly-says-it-stands-against-cosmetic-use-its-weight-loss-drugs-2024-01-04/
[7] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp2312816?query=TOC&cid=NEJM+eToc%2C+February+22%2C+2024+DM2326211_NEJM_Non_Subscriber&bid=2113052011