A arte de fazer medicina

De que forma Picasso, Mozart ou Saramago podem ser úteis à medicina? Poderiam alguns versos de Mia Couto ajudar na cura de alguém? Existe alguma chance de que um belo filme de Wim Wenders nos transforme em melhores médicos? Se a medicina que praticamos for em alguma medida realmente uma arte, então essas questões terão uma resposta afirmativa bem clara. O problema é que a tal “arte da medicina” está ficando cada vez mais esquecida, como se estivesse sendo sufocada por densas camadas de exigências burocráticas e de frias tecnologias que roubam nosso tempo e nossa atenção, além de nos afastarem física e espiritualmente dos pacientes e da verdadeira arte de fazer medicina.

Em todo caso, costumamos dizer que a medicina é uma arte, embora essa ainda seja uma afirmação desconfortável para muita gente. Há quem pense que a medicina deva ser fundamentalmente uma ciência, a qual deveria ser praticada de maneira rigorosa conforme seriam os métodos científicos. Porém, talvez o mais correto seja afirmar que a medicina é uma mistura de arte e ciência em doses variadas, a depender da situação clínica e dos profissionais e pacientes envolvidos. Não há como fazer medicina de uma forma humana – e, portanto, a única maneira adequada de se fazer medicina – apenas com a frieza rigorosa da ciência. Seríamos como autômatos dotados de muito conhecimento, pouca sabedoria e nenhum calor humano, e é por isso que a visão cientificista atual da medicina de certa forma desumaniza nossa prática clínica e os cuidados de saúde.

Em certa medida, esse desconforto decorre do fato de a arte se caracterizar por qualidades que costumam ser vistas com alguma desconfiança dentro da medicina acadêmica. Coisas como sensibilidade, liberdade, criatividade ou espontaneidade não são ensinadas em currículos médicos e nem mesmo estimuladas nas faculdades. É como se elas fossem vistas como um desvirtuamento da medicina científica e da prática clínica moderna. Mas este é um grande engano. O médico sempre deve ter sensibilidade suficiente para perceber quais são as verdadeiras demandas dos pacientes, além de ter algum grau de liberdade para escolher entre as diversas opções terapêuticas disponíveis e possivelmente efetivas, de criatividade para imaginar novas alternativas para manejar um determinado caso clínico complexo e de espontaneidade para seguir de maneira responsável a própria intuição quando isso parecer adequado e seguro.

A arte é, por um lado, terapêutica: ela pode nos extasiar, relaxar ou emocionar, e ninguém duvida de que essas sensações sejam benéficas para os seres humanos – médicos incluídos – nas mais diversas situações. O protótipo da “arte terapêutica” talvez seja a musicoterapia, na qual diversas formas de música são usadas com fins terapêuticos objetivos. Mas existem situações mais subjetivas, como quando a leitura de uma bela poesia faz com que nos sintamos mais vivos ou saudáveis. A mesma lógica também vale para uma inspiradora visita a um museu ou uma ida ao teatro. Isso sem falar que o próprio ato da consulta médica traz em si um tanto de arte performática, uma vez que devemos encarnar diferentes personae ou versões de nós mesmos – todas elas igualmente autênticas – que melhor se adaptem a cada situação clínica distinta.

Por outro lado, a arte pode ser usada com fins diagnósticos: há várias iniciativas que guiam médicos e estudantes de medicina em visitas regulares a museus a fim de treinar seu poder de observação e discernimento por meio da análise de obras de arte. Já existem até mesmo estudos mostrando que os médicos expostos a esse tipo de vivência podem ter melhores habilidades diagnósticas. Como se isso não bastasse, o simples fato de o profissional se deixar emocionar pela beleza dos sons, palavras e imagens contidas nas várias formas de arte nos aproxima de alguma forma de todas as outras pessoas, pois passamos a compreender melhor a alma humana. E isso pode ser de suma importância na hora de desenvolvermos a empatia necessária à nossa atividade e de entendermos melhor as narrativas clínicas trazidas pelos pacientes.

Enfim, a medicina não poderia jamais ser praticada apenas com a frieza da ciência, e tal visão bastante comum atualmente pode nos estar adoecendo a todos. Um tanto de arte é fundamental para que possamos praticar uma medicina realmente humana. Assim, todos nós – médicos e pacientes – temos muito a aprender não apenas com cientistas e médicos, mas também com essas mentes geniais dos mais variados tipos de artistas. Não há qualquer dúvida de que a exposição repetida às diversas formas de arte criadas pelo homem ao longo da história pode nos tornar melhores como seres humanos. E tudo aquilo que nos torna melhores como seres humanos só pode nos tornar melhores como médicos.

*A experiência do leitor fica completa ao assistir Pablo Casals interpretando a suíte em G para violoncelo de Bach no ambiente para o qual ela foi originalmente composta.