A medicina algumas vezes peca pelo excesso. Em certos casos isso é até mesmo compreensível e aceitável, como quando agimos com demasiado zelo e realizamos novos exames ou prescrevemos mais medicamentos que o necessário a fim de garantirmos – ou pelo menos acreditamos nisso – que o paciente sob nossos cuidados tenha uma evolução clínica mais favorável. Em situações assim agimos por algo nobre, que é a nossa preocupação sincera em relação à saúde do paciente. O problema é quando fatores menos altruístas, como os aspectos puramente pecuniários, passam a pautar as decisões na medicina e transformam o excesso em regra.
A área da economia tem um termo curioso para se referir à opção deliberada pelo excesso: o “Princípio do porco”[1]. Segundo este princípio, “se uma coisa é boa, então uma quantidade maior dessa coisa só pode ser ainda melhor”. É evidente que tal visão hedonista só pode ser justificada quando se faz uma leitura superficial da economia que a desvincule de seus aspectos sociais e morais. É por isso que as pessoas exageradamente gananciosas recebem a alcunha de “porcos” no meio econômico. Na economia séria e que considera todo o contexto em que está inserida, é evidente que o excesso pode ser prejudicial, em parte por causa das “externalidades” ou efeitos adversos indiretos de nossas decisões. E isso não é diferente em vários âmbitos da medicina.

Quanto mais estudos científicos, melhor?
A ciência é uma coisa ótima e uma das maiores criações do homem racional. Logo, segundo o princípio do porco, quanto mais ciência tivermos, melhor. O problema é que o excesso de estudos científicos não significa que mais descobertas relevantes serão feitas nem isso se traduz em mais saúde para a população. Em 2009, dois pesquisadores que ajudaram a desenvolver as bases da Medicina Baseada em Evidências, Ian Chalmers e Paul Glasziou, analisaram essa questão e chegaram à conclusão de que pelo menos 85% das pesquisas clínicas são absolutamente desnecessárias[2]. Isso significa não apenas um desperdício de bilhões de dólares todos os anos, mas também que a qualidade média do que chamamos de “ciência” está muito abaixo do esperado. Há muito hype e distorção, e o excesso acaba cegando os profissionais para a má qualidade de grande parte dos estudos, além de dificultar o acesso àquelas poucas pesquisas realmente boas. E este exagero todo só ocorre porque temos dado preferência à quantidade em vez da qualidade por meio do tal “publicar ou perecer” e porque criamos uma verdadeira “economia do conhecimento”, a qual envolve grandes conglomerados editoriais, centros acadêmicos hiperativos e a própria indústria farmacêutica, os quais se utilizam da produção excessiva de estudos muitas vezes inúteis para gerar lucro para si em detrimento da ciência, da medicina e da saúde das pessoas.
Quanto mais exames, melhor?
A indústria das tecnologias diagnósticas em saúde é outro exemplo do exagero perpetrado com fins pouco altruístas. Há quem imagine que, se a realização de alguns poucos exames bem específicos pode ser uma boa ideia para conhecermos o estado de saúde do paciente e pautarmos as decisões clínicas, então a realização de “todos os exames possíveis” só pode ser ainda melhor, o que nos leva a bizarrices do tipo “tomografias de corpo inteiro” e listas intermináveis de dosagens bioquímicas estapafúrdias. O problema é que a realização exagerada e irracional de exames tem como principal consequência o aumento dos custos e da confusão para médicos e pacientes. Exames complementares deveriam ser solicitados apenas para complementar os achados da avaliação clínica ou para corroborar alguma hipótese diagnóstica. O uso exagerado de exames enfraquece a relação médico-paciente, aumenta desnecessariamente os custos da saúde para todos e não costuma acrescentar mais saúde às pessoas, embora encha as burras da indústria de exames “complementares” e de tecnologias diagnósticas.

Quanto mais remédios, melhor?
O uso de um número exagerado de medicamentos ou “polifarmácia” é uma das pragas modernas. As pessoas nunca tomaram tantos medicamentos como hoje e, paradoxalmente, elas nunca se sentiram tão “doentes”. Estima-se que a prevalência de polifarmácia aumente com a idade e atinja quase 40% dos idosos[3]. O problema é que a possibilidade de reações medicamentosas adversas cresce conforme o aumento do número de medicamentos ingeridos. De tal forma que não é incomum que novos medicamentos sejam acrescentados ao receituário para tratar os efeitos colaterais dos medicamentos anteriormente prescritos. A isso chamamos de “cascatas terapêuticas”, e elas são mais comuns do que imaginamos, como quando prescrevemos um diurético para reduzir o edema causado por bloqueadores dos canais de cálcio usados no tratamento da hipertensão (quando a melhor opção seria trocar o anti-hipertensivo inicial). Não é à toa que a medicina tem desenvolvido diversas campanhas para desestimular o uso irracional das intervenções médicas, como a Choosing Wisely, a Less is More e a Slow Medicine, além de criar nos últimos anos o procedimento da “desprescrição”, no qual o médico analisa todos os medicamentos em uso pelo paciente e procede à retirada gradual daqueles considerados fúteis ou perigosos. Aqui, menos é certamente mais.
Quanto mais dados, melhor?
As tecnologias modernas estão criando mais uma quimera para médicos e pacientes, representada pelos famigerados dispositivos de monitoramento contínuo e coleta de dados. Eles são representados por relógios “inteligentes”, pulseiras “inteligentes” e até mesmo anéis “inteligentes”[4]. Tais dispositivos são usados por pessoas também supostamente inteligentes e ficam constantemente capturando dados – nem sempre com a ciência e concordância de seus usuários –, os quais são agrupados em imensos bancos de armazenamento com a suposta justificativa de que isso possa melhorar a saúde dessas pessoas ou facilitar o trabalho médico. Se formos honestos, admitiremos que os profissionais já têm dificuldades para tomar decisões com um número pequeno de dados (pressão arterial, glicemia, histórico familiar, etc.), o que pode nos levar a questionar se uma quantidade quase inimaginável de dados realmente trará benefício a médicos e pacientes ou se isso apenas aumentará ainda mais os custos e a confusão. A indústria de dispositivos vestíveis e de outras maquininhas mirabolantes que piscam, apitam e geram dados é uma das mais lucrativas atualmente e já está envolvida diretamente na produção (e potencial distorção) da ciência que poderia justificar o seu uso[5] (como a indústria farmacêutica sempre fez[6] e, antes dela, a indústria do tabaco[7]). Em resumo, o excesso de dados certamente se transformará em excesso de lucro para alguns magnatas, mas as chances de que isso se traduza em mais saúde para as pessoas talvez sejam bem menores do que imaginamos.

Porcos por todo lado
Não há absolutamente nada errado em ganhar dinheiro honestamente com o próprio trabalho, e os profissionais de saúde, pela natureza de sua atividade, devem ser adequadamente remunerados. O problema é o excesso e o consequente desvirtuamento da medicina. Também é teoricamente plausível a existência de empresas sérias cuja ganância possa ser de alguma maneira regulada. Porém, a medicina está em grande medida dominada por essas grandes corporações que têm uma visão mercantilista da atividade médica e que tentam nos convencer diariamente de que mais é melhor, o que não é verdade na imensa maioria das vezes para médicos e pacientes. Isso nos tem levado a desperdiçar fortunas em estudos inúteis, exames desnecessários, medicamentos inadequados e dados biométricos redundantes. Essa lógica do princípio do porco, de que mais é sempre melhor, só pode ser verdadeira para quem tenha escolhido a área da saúde apenas para lucrar muito, mais do que para ajudar as pessoas a viverem melhor. Médicos e pacientes acabam ficando perdidos no meio disso tudo e muitas vezes servem apenas de alimento para uma engrenagem nefasta que desvirtua a própria razão de ser da medicina.

Se aplicarmos à medicina o princípio econômico descrito acima, seriam porcos todos aqueles que exageram na dose de ganância e colocam o lucro pessoal acima do bem-estar dos pacientes, da sustentabilidade dos sistemas de saúde e da credibilidade da ciência e da própria medicina. Assim, são porcos aqueles que iludem médicos e pacientes sobre os benefícios de produtos ineficazes ou perigosos. São porcos aqueles que publicam estudos visivelmente enviesados apenas para faturar alto ao obter mais leitores para suas publicações. São porcos aqueles que atuam como garotos-propaganda da indústria ou que aceitam dinheiro e outros mimos para aumentar a prescrição de medicamentos, solicitar exames prescindíveis ou implantar dispositivos médicos desnecessários. São porcos aqueles que medicalizam cada minuto da vida humana para vender produtos e serviços inúteis nas redes sociais. São porcos aqueles que defendem que a indústria farmacêutica produza os estudos que avaliam seus próprios produtos, introduzindo vieses insolúveis, minando a credibilidade da ciência e aumentando desnecessariamente o consumo de medicamentos. E são porcos aqueles que vendem seus produtos a preços escorchantes que colocam em risco os próprios sistemas de saúde e a vida dos pacientes que dele dependem. Ou seja: há porcos por todo lado. Resta saber até quando nós, médicos e pacientes, seguiremos permitindo que eles tenham amplo domínio sobre uma empreitada humana tão fundamental como a medicina.
* A experiência do leitor fica completa ao assistir ao vídeo ou ler o texto ao som da música.
[1] https://people.potsdam.edu/nuwermj/hunt/06%20Welfare%20Economics.pdf
[2] https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(09)60329-9/fulltext
[3] https://bmcgeriatr.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12877-022-03279-x
[4] https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/galaxy-ring-samsung-apresenta-anel-inteligente-e-da-previsao-de-lancamento/
[5] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmoa1901183
[6] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846