Conta a história que, durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães teriam usado uma tática de guerra que deixava seus adversários absolutamente atordoados: a Blitzkrieg[1]. O termo significa algo como uma “guerra-relâmpago”, e ela se caracterizava exatamente pelo efeito de surpresa, pela rapidez das manobras e pela brutalidade dos ataques, os quais deixavam seus adversários sem qualquer capacidade de se defender. Paralisados e desmoralizados, eles viravam presa fácil para a força aérea alemã. A guerra acabou, muitos traumas já foram superados, mas o termo Blitzkrieg entrou para a história como uma tática de combate que segue sendo usada em áreas bem distintas, como até mesmo na propaganda de medicamentos.

O caso mais recente de Blitzkrieg sofrido pela medicina é o das “canetas emagrecedoras”. Os chamados agonistas do receptor de GLP-1 passaram em poucos meses de drogas secundárias no tratamento do diabetes a artigo de luxo de primeira necessidade para uma população de obesos que não para de crescer. Tais medicamentos, representados por drogas já famosas como a semaglutida e a tirzepatida, realmente parecem conferir alguns benefícios clínicos em nível individual, mas o que chama a atenção é a agressividade das campanhas de marketing perpetradas pela indústria com a ajuda de seus fiéis escudeiros, como a mídia sensacionalista, os influencers das redes sociais, algumas associações de especialidades médicas patrocinadas pela indústria e muitos profissionais de saúde que obtêm algum ganho pessoal com a empreitada.
Não se trata de questionar o eventual benefício dessa classe de drogas em nível individual – em especial para as pessoas que já tenham tentado todas as outras medidas terapêuticas para emagrecer e que associem seu uso a uma dieta adequada e à prática de exercícios físicos –, mas de realçar que há muita coisa errada nessa história toda e que a brutalidade da campanha de marketing pode impedir que isso seja percebido. Em primeiro lugar, parece claro que o benefício das drogas pode estar superestimado, uma vez que os números citados se baseiam em estudos realizados pela própria empresa farmacêutica que produz e vende as drogas a preço de ouro, o que potencialmente distorce e exagera seus efeitos[2].
Em segundo lugar, já ficou bem demonstrado que a indústria farmacêutica que desenvolve essas drogas gastou uma verdadeira fortuna para convencer a classe médica sobre os seus benefícios, o que inclui os mimos mais variados, como jantares, viagens e honorários para supostas palestras[3] [4]. Não há dúvidas de que tal investimento é altamente lucrativo para a indústria. Também não pode haver dúvidas de que a aceitação de qualquer benefício da indústria – seja em nível do profissional individual ou das organizações médicas que lidam com o problema da obesidade – para aumentar a prescrição de qualquer droga é algo vergonhoso e que macula a imagem da própria medicina.

Além disso, uma grande parte dos pacientes que começam a usar esses medicamentos não consegue manter o tratamento por longo prazo devido a efeitos adversos e à evidente toxicidade financeira imposta pelo tratamento, o que ocorre em nível individual e de todo o sistema de saúde. Ainda que essas drogas representem um avanço no tratamento da obesidade, não é preciso um raciocínio muito elaborado para perceber que nenhum medicamento será realmente benéfico se ele ameaçar a sustentabilidade do sistema de saúde. Para se ter uma ideia, um artigo recente no JAMA estimou que se os quase 100 milhões de obesos americanos elegíveis para uso dessas drogas começassem a recebê-las, o custo anual direto para o sistema de saúde chegaria a nada menos que 1,5 trilhão de dólares, uma vez que a droga custa cerca de 15.000 dólares anuais nos EUA[5]. Há esperança de que as negociações baixem este custo para “apenas” 600 bilhões de dólares, mas convenhamos que uma cifra como essa tem um “poder de convencimento” que vai muito além dos eventuais quilinhos perdidos.
É claro que alguns pacientes podem se beneficiar com essas drogas. É igualmente evidente que essas drogas não representam de forma alguma a solução para o problema da epidemia de obesidade em longo prazo. Pelo contrário, o custo indecente relacionado ao seu uso fatalmente desviará recursos de outras medidas socioambientais que poderiam ter impacto muito maior em longo prazo. Isso é ainda mais vergonhoso quando já foi demonstrado que o custo estimado de produção da droga pode ser de menos de um dólar[6]. O que chama a atenção é a virtual ausência de vozes que defendam uma visão mais crítica e ponderada em relação a essas drogas, a qual possa ao mesmo tempo defender o seu uso pontual quando bem indicadas e proteger os recursos finitos de sistemas de saúde já bastante combalidos. É preciso lembrar que os quilinhos perdidos com a droga são prontamente recuperados ao cessar o seu uso[7] [8], mas a fortuna desviada dos sistemas de saúde para as burras da indústria farmacêutica jamais retornará aos cofres públicos. Nessa Blitzkrieg da indústria farmacêutica, quem parece ter ficado atordoado é a própria medicina.

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Blitzkrieg
[2] file:///C:/Users/andre/Documents/links/EBM/Sponsorship-bias-in-clinical-research.pdf
[3] https://www.reuters.com/investigates/special-report/health-obesity-novonordisk-doctors/
[4] https://fortune.com/well/2023/07/21/ozempic-novo-nordisk-meals-travel-prescribing-doctors/
[5] https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2815919
[6] https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2816824
[7] https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/novo-nordisk-says-stopping-obesity-drug-may-cause-full-weight-regain-5-years-2023-03-30/
[8] https://www.nytimes.com/2023/12/11/well/tirzepatide-weight-gain-mounjaro.html