A história do ceticismo é já muito antiga, remontando a mais de 2.000 anos quando o seu principal representante – Pirro de Élis – definiu as bases do pensamento cético. Diferentemente da ideia atual que muitos podem ter sobre a doutrina, o cético não desacredita de tudo. Muito pelo contrário, ele reconhece quando existem argumentos tanto contrários como a favor de uma determinada ideia, aceitando a incerteza e suspendendo o julgamento da questão, procedimento a que os antigos filósofos atribuíram o lindo nome de epoché. Para o adepto do ceticismo, é exatamente essa suspensão do julgamento que pode trazer a tranquilidade da alma conhecida como eudaimonia. Dessa forma, parece que os céticos antigos estavam mais à procura de uma terapia que de uma teoria.
Quando trouxe à luz em meu primeiro livro (Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro) o ceticismo médico personificado em um médico fictício – o Dr. Pirro –, a ideia era demonstrar que na ciência médica atual há razões de sobra para o ceticismo. Nunca se tratou de desacreditar a medicina em si, pois essa é uma arte milenar que tenta reduzir o sofrimento das pessoas e que também se baseia na ciência para definir o que fazer. Porém, está cada vez mais claro que a medicina não deve se basear apenas na ciência, devendo se basear também no bom senso, na compaixão e em saberes humanos diversos como filosofia, antropologia, biologia, ecologia, artes e tantos outros. Além, é claro, de ter uma visão bastante mais crítica em relação ao que chamamos de “ciência” atualmente.

Uma das principais razões para a necessidade de parcimônia em relação à primazia da ciência na medicina atual é a perniciosa onipresença dos conflitos de interesse. A partir do momento em que a grande maioria dos estudos científicos realizados para analisar a efetividade de diversas intervenções médicas (medicamentos, dispositivos, etc.) é realizada e financiada pelos próprios fabricantes desses produtos (constrangedores 75%[i]), a dúvida se impõe como necessidade autoevidente. Nunca na história da humanidade as pessoas tomaram tantos remédios, realizaram tantos procedimentos e tiveram tantos dispositivos implantados em seus corpos. Nem por isso as pessoas de hoje são mais saudáveis ou se sentem melhor do que há algumas décadas. Duvidar aqui não significa afirmar que essas intervenções não sejam corretas em diversas situações, mas apenas reforçar que se deve analisar com muito mais parcimônia e imparcialidade os estudos que levam a essas indicações, sem se deixar levar cegamente por diretrizes maculadas por interesses financeiros ou por campanhas de marketing realizadas pela indústria. Além disso, ao reduzir a impressão de “certeza absoluta” relacionada à ciência, o ceticismo cria espaço para a reflexão e diminui a velocidade e a agressividade de nossas intervenções, o que na maioria das situações é benéfico para médicos e pacientes.
Outro motivo para a dúvida diz respeito à generalização dos achados de estudos realizados em populações bem específicas. O padrão-ouro científico para a avaliação das intervenções é o ensaio clínico randomizado (ECR), onde se tenta controlar todos os fatores que podem influenciar nos desfechos de interesse. O problema é que, ao fazer isso, o ECR gera uma espécie de paradoxo: quanto mais perfeito é o ECR, mais ele se distancia da medicina da vida real, onde a imprevisibilidade se impõe. Mesmo que os estudos sejam metodologicamente perfeitos e não tenham sofrido interferência da indústria, eles não garantem o efeito específico daquela determinada intervenção no paciente específico que estamos tratando, devendo servir apenas como um dos vários fatores que embasam nossas decisões. Os estudos clínicos podem mostrar que populações que se submetem a uma determinada intervenção podem ter menor risco de um determinado desfecho clínico ruim que populações que não se submeteram a ela, mas isso não garante o sucesso do tratamento do paciente individual. Ainda que essa informação possa servir de base para nossas decisões, ela deve ser vista com cautela em nível individual. Duvidar aqui é um pouco como reconhecer os limites da ciência e respeitar a individualidade do paciente e a imprevisibilidade da vida.
Assim, a medicina pode ter perdido muito de seu espírito crítico nas últimas décadas além de ter abandonado boa parte de seu lado humano ao abraçar com tanta força os números e as estatísticas e deixar em segundo plano a pessoa de carne e osso que busca a sua ajuda. A medicina passa atualmente por um momento complicado com o esfriamento da relação médico-paciente, o uso exagerado de intervenções médicas e das tecnologias mais variadas, além da medicalização excessiva de problemas comuns ao cotidiano das pessoas. O contraponto cético proposto pelo Dr. Pirro em meu livro visa estimular uma reflexão saudável sobre esses problemas, sem jamais propor um novo tipo de certeza. Ao utilizar a dúvida como ferramenta fundamental, o ceticismo médico busca criar espaços para a reflexão ponderada sobre os achados científicos, reduzir a influência dos fatores econômicos que distorcem os resultados das pesquisas científicas, diminuir a velocidade e a agressividade das intervenções médicas e restabelecer uma relação médico-paciente mais forte e longeva. Tudo o que sempre formou a base da boa medicina. Parece que o nascimento do Dr. Pirro está mais que justificado.

[i] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846