A medicina tem finalmente acordado para o fato de que o que chamamos de corpo humano é mais precisamente um ecossistema formado por muito mais do que apenas o conjunto de nossas células e fluidos diversos. Descobrimos com um misto de incredulidade e pavor que há em nosso organismo dez vezes mais bactérias que células humanas[1]. Isso tem levado a medicina cada vez mais a dar especial atenção à chamada microbiota humana, o conjunto de microrganismos que habitam cada região de nosso corpo.
Entre as regiões habitáveis de nosso corpo, nosso sistema digestivo tem sido um dos lugares preferidos para a realização dos mais diversos estudos que tentam não apenas identificar as bactérias, vírus, fungos e demais microrganismos que coabitam as nossas entranhas, mas também compreender as relações estreitas mantidas entre nosso organismo e esses improváveis inquilinos. Foi a partir desses estudos que descobrimos que muitos desses habitantes são extremamente importantes para a realização de diversas funções metabólicas fundamentais para a nossa saúde.
Não demorou para vislumbrarmos um futuro em que dominaríamos essa microbiota – afinal, o homem sempre nutriu o desejo megalomaníaco de controlar a natureza em todas as suas manifestações – e escolheríamos cuidadosamente cada microrganismo que poderia fazer parte de nosso ecossistema pessoal. Na verdade, vivemos atualmente a continuação de um sonho que começou com o surgimento dos antibióticos, quando acreditamos que dominaríamos as bactérias e outros seres considerados inferiores. O tempo passou, abusamos do uso de antibióticos e o sonho parece estar se tornando um pesadelo com o risco crescente de infecções por bactérias resistentes a todos os antibióticos existentes.
O capítulo seguinte dessa nossa conquista frustrada da natureza começou há alguns anos, com o desenvolvimento de inúmeras formas de manipulação da microbiota humana, o que envolve desde o uso relativamente inócuo de substâncias pré-bióticas e pró-bióticas até coisas bastante esquisitas como o famigerado “transplante de fezes”, realizado por meio da instilação de uma solução de matéria fecal diretamente no intestino das pessoas por meio de sondas colocadas através da boca ou do ânus. É fácil perceber que uma pessoa precisa estar bastante adoecida para concordar com a realização de tais procedimentos.

Foi pensando nisso – e no enorme potencial de lucro – que a indústria farmacêutica resolveu participar da empreitada e facilitar o uso oral disseminado de um tipo de “matéria fecal terapêutica”. Trata-se, na verdade, de cápsulas do que seria o “cocô ideal”, um sonho de consumo inusitado que é vendido por doadores sadios e composto por aquelas bactérias consideradas “boas” para o ser humano e que estão associadas a estados de saúde positivos na população geral. Os doadores sadios são pessoas jovens, sem comorbidades e que se alimentam de maneira adequada, o que possibilita que elas embolsem até 1.500 dólares por mês doando a própria obra[2]. O que a indústria faz neste caso é selecionar, coletar e centrifugar o cocô ideal e, após um processo de liofilização, coletar em cápsulas o pó amarronzado resultante. No caso da Mikrobiomik, empresa espanhola que acaba de divulgar na grande mídia os resultados iniciais de seus estudos[3], as cápsulas são brancas e estariam preenchidas com “microbiota intestinal purificada de amplo espectro”, um nome pomposo para algo que todos conhecemos muito bem.
A ideia por trás da busca de medidas mais fisiológicas para restaurar a microbiota fecal desequilibrada é atraente. É certamente mais prático e menos agressivo engolir cápsulas do que ser invadido por sondas. Essa poderia ser uma boa solução para problemas agudos como a colite pseudomembranosa causada pelo supercrescimento da bactéria Bacteroides fragilis ou mesmo para os casos menos graves de diarreias causadas por disbiose secundária ao uso de antibióticos. Porém, seríamos ingênuos se imaginarmos que a gananciosa indústria farmacêutica se contentaria com o uso parcimonioso dessa nova intervenção médica.
Em primeiro lugar é importante questionar se o que estamos vendo é realmente o método científico sendo usado de maneira rigorosa por cientistas imparciais para se alcançar a verdade científica em relação ao uso dessa nova modalidade terapêutica ou se, mais uma vez, trata-se da indústria farmacêutica a distorcer o método científico e usá-lo como forma de marketing. Há que se desconfiar muito quando os estudos são alardeados precocemente na mídia apesar de serem extremamente pequenos (cerca de 20 pacientes em cada braço), apresentarem delineamento aberto (em vez de cego), mostrarem taxa de abandono de quase 50% e terem sido patrocinados pela própria indústria que produz a droga e que prevê ganhos milionários se a sua narrativa “colar”[4]. É evidente que, sob o ponto de vista científico, o estudo em questão beira o constrangimento.
Além disso, existe o risco de que essa nova forma de tratamento seja vendida como mais uma panaceia que sirva para todo e qualquer mal que aflige a saúde das pessoas. O fato de existirem associações estatísticas entre determinados tipos de microbiota fecal e algumas doenças crônicas não significa causalidade nem que tais intervenções sejam efetivas para tratar essas doenças. O problema é que, se permitirmos que essas hipóteses sejam estudadas pela própria indústria farmacêutica em seus testes fajutos, é praticamente certo que os estudos – pelo menos aqueles que verão a luz do dia – mostrarão resultados positivos e promissores. Já passa da hora de separarmos a verdadeira ciência (rigorosa, honesta e transparente) desse embuste produzido pela indústria farmacêutica e seus aliados no campo científico.
Se a coisa já é complicada no caso da diarreia aguda causada por antibióticos, ela é ainda mais nebulosa para o tratamento das doenças crônicas. Já existe quem acredite que a manipulação da microbiota pode ser um tratamento eficaz em condições clínicas tão improváveis como a depressão, o autismo e o câncer. Seria ótimo se uma intervenção relativamente inócua como essa pudesse ser útil para tratar algumas doenças graves, mas acreditar nisso com base apenas na literatura torta e esquálida produzida pela própria indústria farmacêutica seria uma ingenuidade imperdoável.
Além disso, a permanência de determinadas bactérias em nosso sistema digestivo não depende de nossa vontade ou da ingesta constante das cápsulas de fezes. Cada ser humano tem particularidades genéticas e hábitos dietéticos que acabam favorecendo a persistência de alguns tipos de bactérias em detrimento de outros. Ninguém poderia obrigar bactérias características de pessoas vegetarianas a se alimentarem de subprodutos de origem animal em nossos intestinos. No longo prazo, são as bactérias que escolhem onde vão se estabelecer e se vão persistir conosco mais do que alguns dias. Qualquer mudança longeva na qualidade de nossa microbiota intestinal deveria passar por uma transformação em hábitos como dieta e estilo de vida.
Se por um lado isso é um grande problema para o sucesso dessa nova modalidade terapêutica, por outro é um incentivo a mais para a indústria farmacêutica, uma vez que os pacientes deveriam continuar usando as cápsulas de cocô ideal por toda a vida no caso de todas essas doenças crônicas. Não é preciso dizer que, para alguém que já esteja bastante doente ou deprimido, a ideia de ingerir merda por vários anos não parece lá muito animadora.
Enfim, a manipulação da microbiota intestinal por meio das cápsulas de cocô ideal pode ser uma alternativa viável em doenças agudas como a diarreia causada pelo uso de antibióticos, mas o mesmo não pode ser dito de condições crônicas como depressão, obesidade ou câncer. Existe ainda o problema da ganância da indústria e o caráter disfuncional da ciência atual, o que pode permitir que, por meio da manipulação previsível de dados (pseudo)científicos, sejam sugeridos benefícios espúrios que pareçam justificar o amplo uso das cápsulas de merda em pó para inúmeras condições clínicas, transformando-as na mais nova panaceia da medicina. Convenhamos que, entre as várias terapias candidatas a panaceia atualmente – como os canabinoides, os alucinógenos, os análogos de GLP-1 e os inibidores de SGLT-2 –, a ideia de usar cápsulas de merda em pó é a mais difícil de engolir.

[1] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4991899/#:~:text=The%20Ratio%20of%20Bacteria%20to%20Human%20Cells%20in%20the%20Adult%20Body&text=We%20note%20that%20if%20one,will%20be%20about%2010%3A1.
[2] https://goodnatureprogram.com/
[3] https://elpais.com/salud-y-bienestar/2024-06-13/una-pastilla-con-heces-sustituye-por-primera-vez-al-antibiotico-para-tratar-infecciones-graves.html
[4] https://mikrobiomik.net/ensayo-clinico-clostridium-difficile/#protocolo