O derretimento do ozempic

O mundo atual passa por uma crise complexa: sem conseguirmos controlar a epidemia de obesidade causada por um estilo de vida consumista e sedentário, passamos a apostar todas as fichas nas soluções apresentadas pela indústria farmacêutica, o que pode nos levar a um buraco ainda mais profundo logo ali adiante. Isso porque o foco excessivo em soluções farmacológicas simplistas nos afasta daquelas soluções realmente eficazes em longo prazo e que incluem, entre outras coisas, mudanças ambientais e culturais na sociedade. Além disso, essa solução farmacológica – mesmo se funcionasse – teria um custo absolutamente impraticável para a sociedade. Para se ter uma ideia, um artigo recente do JAMA[1] mostra que se todos os obesos americanos elegíveis para o uso das novas drogas injetáveis antiobesidade recebessem esses tratamentos, o custo anual passaria de um trilhão de dólares. É dinheiro que não acaba mais (1.000.000.000.000,00 referentes a um custo mensal estimado em até 1.500 dólares para quase 100 milhões de obesos estadunidenses), e isso seria gasto todos os anos para tentar tornar a população menos obesa. Convenhamos que somente alguém cego ou que tenha algum benefício pessoal com a empreitada poderia defender uma solução dessas.

Nosso problema começa com o óbvio: os supostos benefícios dessa classe de drogas – análogos do GLP-1 – que ficaram famosas por serem aplicadas na forma de “canetas emagrecedoras” se baseiam em estudos realizados pela própria indústria farmacêutica e imediatamente alardeados na mídia. Se fôssemos prudentes, teríamos desconfiado desses números desde o início. Porém, como já perdemos há muito tempo a capacidade de duvidar e, mais ainda, de exigir evidências científicas imparciais e transparentes, acabamos acreditando ingenuamente nesses números e passamos a investir bilhões em drogas que, de todo modo, jamais resolveriam a epidemia de obesidade. Além disso, permitimos que a mídia executasse uma campanha de marketing devastadora para os cofres dos sistemas de saúde ao mesmo tempo em que a indústria farmacêutica que produz essas drogas derramava fortunas nos bolsos de profissionais formadores de opinião que aceitavam viagens, jantares, honorários para palestras (os famigerados speakers ou garotos-propaganda da indústria) e outros presentinhos com o claro intuito de moldar a percepção da classe médica e permitir a invasão das “canetas emagrecedoras”[2].

Nesse ponto, alguém dirá que essas novas drogas apresentam benefícios jamais vistos antes, e essa é de fato a percepção de muita gente. Porém, isso é apenas parcialmente verdadeiro e, se revisarmos a literatura referente àquelas drogas emagrecedoras mais antigas, veremos que os benefícios demonstrados em muitos estudos não diferem tanto assim daqueles alardeados com as drogas modernas. Por exemplo, enquanto os estudos e manchetes alardearam uma redução de quase 15%[3] do peso corporal com o uso da semaglutida durante um ano, um estudo de 2012[4] já demonstrava que uma combinação de fentermina e topiramato poderia levar a uma redução de mais de 10% no peso corporal, o que não é assim tão diferente a ponto de justificar o custo extravagante das drogas atuais. Quem quiser ir um pouco mais fundo verá que o próprio orlistat, o qual foi responsável por tantos acidentes evacuatórios constrangedores, também poderia, conforme alguns estudos, produzir uma perda de peso de mais de 10%[5]. Até mesmo a sibutramina conseguia obter perdas ponderais de quase 10% quando usada em doses maiores[6]. Ou seja, todas essas drogas antigas – igualmente tratadas em sua época como revolucionárias e milagrosas – obtinham perdas ponderais que não eram tão diferentes dessas supostamente obtidas pelas “canetas emagrecedoras”. Ainda assim elas caíram em desuso não tanto pelo surgimento de drogas novas, mas sim porque o tempo – este grande conselheiro – ajudou a demonstrar que seus reais riscos e benefícios eram bem diferentes daqueles demonstrados no “mundo encantado” dos estudos da indústria, onde os benefícios das drogas costumam ser bastante inflados.

Os efeitos colaterais das novas drogas também são inquietantes. Eles começam com uma toxicidade financeira brutal, a qual se manifesta tanto em nível individual como do sistema de saúde. É evidente que quase ninguém conseguiria manter o uso dessas drogas por um grande período pelo simples fato de que elas são absurdamente caras. O preço dessas drogas não é apenas escorchante, mas é também indecente, já que uma análise independente feita pela organização Médicos Sem Fronteiras demonstrou que o custo real de produção delas é ínfimo, o que faz com que o preço cobrado chegue a ser até 200 vezes maior que o custo de produção[7]. Os Estados Unidos (maior população de obesos ricos do planeta) pagam mais de 1.000 dólares ao mês por uma droga que poderia ser vendida com lucro por menos de 5 dólares. Parece que alguém está sendo enganado.

Além disso, relatos de efeitos colaterais dessas drogas são cada vez mais comuns nos noticiários e na literatura científica, abrangendo desde a quase onipresente náusea[8] (cuja incidência pode chegar a quase 50%) até outros problemas graves[9] como pancreatite, obstrução intestinal, gastroparesia, neuropatia óptica isquêmica que pode causar cegueira[10], entre tantos outros que ainda serão descobertos no futuro próximo. Isso sem falar que grande parte das pessoas recupera todo o peso perdido após parar de usar a droga[11]. Alguém dirá que o risco desses efeitos colaterais pode ser completamente anulado pelos grandes benefícios demonstrados por essas drogas em termos de perda ponderal, mas talvez seja exatamente nesse ponto que as coisas se complicam ainda mais.

Outro estudo recentemente publicado no JAMA[12] mostra que, na vida real, os benefícios dessas drogas podem ser bem mais esquálidos do que aqueles números estrondosos mostrados nos estudos da indústria e repercutidos pela mídia. O estudo em questão comparou tirzepatida e semaglutida e avaliou cerca de 20 mil pacientes que usaram essas drogas por um período de até um ano. Para surpresa de muita gente, a perda de peso demonstrada pelo grupo que recebeu a semaglutida foi de apenas 8,3% (gráfico acima), um valor muito abaixo da cifra de 15% alardeada pela mídia. Aliás, neste estudo a cifra mágica de perda ponderal de 15% só foi alcançada por meros 10% dos pacientes (gráfico abaixo). Em outras palavras, 90% das pessoas que começaram a usar a droga não alcançaram os 15% de perda ponderal prometidos. Parece, mais uma vez, que alguém está sendo enganado.

Porém, como tudo que é ruim sempre pode piorar, essa perda ponderal de 8,3% descrita se refere apenas aos pacientes que ainda estavam usando a droga e foram pesados após 12 meses, o que representa uma ínfima minoria dos pacientes. Como mais da metade dos pacientes abandonaram o tratamento por razões diversas que podem incluir ineficácia, custo proibitivo e efeitos colaterais insuportáveis, a perda ponderal obtida nas análises de “intenção de tratar” (o que realmente importa na vida real ao se considerar o uso de um tratamento na população) em 12 meses foi de meros 6%, uma informação praticamente soterrada em gráficos nos apêndices do estudo. Convenhamos que ninguém usaria uma droga caríssima, cheia de efeitos colaterais e que obtém apenas 6% de perda ponderal após 1 ano de tratamento. Vale ressaltar que o benefício demonstrado no estudo com a própria tirzepatida também foi praticamente a metade daquele obtido nos estudos da indústria. Novamente, parece que alguém está sendo enganado.

É evidente que as drogas antiobesidade modernas são bem-vindas e podem ser usadas em casos pontuais. O que não deveríamos admitir é o carnaval criado em torno dessas drogas, o qual tem levado a expectativas histéricas e resultados frustrantes em muitos casos. A triste realidade é que as novas drogas antiobesidade talvez não sejam muito diferentes daquelas antigas e que já caíram em desuso por falta de eficácia ou por efeitos colaterais graves. O próprio futuro das drogas atuais talvez não seja muito diferente daquele das drogas milagrosas antiobesidade de antanho. A diferença é que dessa vez teremos transferido muitos bilhões (talvez trilhões!) de dólares para as burras da indústria sem a contrapartida de qualquer benefício relevante e duradouro para a população. Além disso, está claro que os benefícios alcançados pelos pacientes na vida real são muitíssimo menores do que aqueles demonstrados no “mundo mágico” dos estudos da indústria farmacêutica, fato este que deveria ser do conhecimento mais amplo tanto dos profissionais de saúde como de eventuais candidatos a usarem essas drogas.

Imaginar que resolveremos a epidemia de obesidade com medicamentos que agem em determinadas vias metabólicas é tão absurdo e ingênuo quanto termos acreditado há algumas décadas que resolveríamos a epidemia de depressão – uma questão existencial complexa – agindo em neurotransmissores específicos. A tendência do homem moderno à depressão e à obesidade deveria ser vista mais como uma adaptação a um ambiente deprimente e obesogênico do que um descontrole de hormônios e neurotransmissores. Além disso, quem defende a narrativa das drogas milagrosas acaba esquecendo que, na prática, isso nos afasta de tomar aquelas medidas ao nível da sociedade como um todo e que poderiam trazer impactos amplos e duradouros. Que a indústria tente exaustivamente vender a narrativa das drogas milagrosas para médicos e leigos é absolutamente compreensível. Que os médicos acreditem nisso piamente e permaneçam silenciosos enquanto a indústria põe em risco a própria sustentabilidade dos sistemas de saúde é algo absolutamente assustador.


[1] https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2815919

[2] https://www.reuters.com/investigates/special-report/health-obesity-novonordisk-doctors/#:~:text=Novo%20Nordisk’s%20payments%20to%20U.S.,to%20its%20weight%2Dloss%20drugs.&text=Note%3A%20Payments%20associated%20with%20drugs%20Wegovy%20and%20Saxenda.

[3] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2032183

[4] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3270297/

[5] https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(97)11509-4/abstract

[6] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10102256/

[7] https://www.infomoney.com.br/mercados/ozempic-que-custa-us-1-000-pode-ser-produzido-por-menos-de-us-5-diz-estudo/

[8] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9293236/

[9] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2810542

[10] https://jamanetwork.com/journals/jamaophthalmology/fullarticle/2820255

[11] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35441470/

[12] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2821080

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