Não tenho dormido nada bem, incomodado por pesadelos para lá de perturbadores. Gregor Samsa falaria em sonhos intranquilos, mas meus pesadelos envolvendo a ciência médica atual são muito mais tenebrosos do que aqueles que atormentavam o mais famoso personagem de Kafka. É que os meus pesadelos parecem ficar ainda mais medonhos à luz do dia. Em um desses sonhos, descubro perplexo que Einstein trabalhava para uma fábrica de relógios suíços e visava enriquecer vendendo os novos modelos que marcavam um certo tipo de “tempo relativo”. Noutro deles, descubro que o pobre Galileo teria sido contratado por uma gananciosa indústria de equipamentos astronômicos para elaborar as teorias científicas que iriam mudar o mundo, mas que também causariam um salto histórico nas vendas de lunetas e telescópios. É fácil adivinhar que acordo diariamente ensopado e apavorado.

Os pesadelos sempre terminam com um gosto amargo na boca e a triste lembrança de que entregamos voluntariamente o controle da pesquisa clínica para a própria indústria farmacêutica, com todos os problemas evidentes que disso decorrem. Meu desespero é absolutamente compreensível, pois todos sabemos que a ciência verdadeira é desde sempre uma atividade que requer lisura, imparcialidade e transparência por parte de quem realiza as investigações. A lisura representa a honestidade dos investigadores em relação aos métodos utilizados, aos dados coletados e aos processos de divulgação. A importância da imparcialidade é evidente: se os pesquisadores estiverem “torcendo” para determinado resultado, é fácil perceber que isso pode criar vieses metodológicos e até mesmo distorcer a percepção dos resultados. Por sua vez, a transparência permite que outros pesquisadores da área possam, ao terem acesso pleno aos dados dos estudos (e não apenas ao resumo publicado nos periódicos), reanalisar e confirmar a veracidade dos achados apresentados, o que aumenta a sua credibilidade. É fácil perceber que lisura, imparcialidade e transparência são raras quando quem produz a ciência é a própria indústria farmacêutica.
Infelizmente, ao entregarmos a pesquisa clínica – voluntariamente! – para a própria indústria farmacêutica, o que fizemos foi desfigurá-la, transformando-a em algo menor e absolutamente bizarro. Acabamos criando uma coisinha bastante kafkiana: uma situação absurda em que, quanto mais ciência produzimos, mais distantes da verdade parecemos estar ou, pelo menos, mais confusos e desconfiados ficamos. Além disso, nos esforçamos para defender diariamente uma ciência que, bem no fundo, sabemos que de ciência verdadeira tem muito pouco. Uma ciência produzida pela própria indústria, sem qualquer controle externo efetivo ou possibilidade de replicação dos métodos e resultados apresentados, talvez não passe de uma forma de pseudociência, já que nem mesmo a sua falseabilidade popperiana poderia, na prática, ser avaliada.

O que fizemos foi deturpar a ciência médica e metamorfoseá-la em uma espécie de marketing para a indústria farmacêutica. Nessa nova empreitada que criamos, os estudos científicos já não são realizados para responder a questões clínicas importantes geradas pela prática médica e que visam resolver problemas de saúde objetivos dos pacientes. Na ciência médica moderna os desfechos clínicos são escolhidos não por sua relevância clínica, mas sim de acordo com a probabilidade de serem obtidos nas pesquisas. É assim, por exemplo, que aprovamos medicamentos caríssimos para a doença de Alzheimer cujo “benefício” demonstrado nos ensaios clínicos é sabidamente tão pequeno que não é nem mesmo visível ao olho clínico nu. A título de reflexão, poderíamos imaginar o que teria acontecido com esses anticorpos monoclonais antiamiloide se eles tivessem sido testados por pesquisadores independentes e tendo como desfecho medidas clinicamente relevantes para os pacientes com Alzheimer e seus familiares. É evidente que eles jamais teriam sido aprovados em sua forma atual, o que levaria a indústria a se esforçar para desenvolver novas drogas que trouxessem benefícios clinicamente relevantes.
Precisamos perceber o quanto antes que a ciência verdadeira é uma empreitada desenvolvida pelo homem racional e que sempre teve como objetivo trazer benefícios para a humanidade. Einstein desenvolveu suas teorias sem qualquer ambição comercial, apenas para demonstrar que o tempo poderia ser interpretado de uma maneira diferente. Além disso, seus cálculos sempre estiveram disponíveis para quem quisesse analisá-los ou, eventualmente, refutá-los. Da mesma forma, o universo sempre esteve acessível para quem quisesse comprovar ou refutar as ideias de Galileo. Teria sido absolutamente ridículo se Einstein tivesse desenvolvido suas teorias revolucionárias e mantivesse seus cálculos em segredo e fora do alcance de outros cientistas – como faz a indústria com os seus dados sigilosos “comercialmente sensíveis”! – ou se ele fosse patrocinado por uma fábrica de relógios suíços que marcassem um “tempo relativo”. Seria igualmente constrangedor se Galileo fosse garoto-propaganda de uma empresa de lunetas e outros equipamentos astronômicos. Sim, muita coisa mudou – para pior – na ciência.
Como no caso da maçã que penetra na carne de Gregor Samsa e começa a apodrecer, enfraquecendo-o até causar sua morte, este simulacro de ciência médica atualmente patrocinada e controlada pela própria indústria também já dá claros sinais de putrefação. Temos atualmente – e talvez ainda por pouco tempo – a oportunidade de mudar de rumo e de retomar o controle e a seriedade da pesquisa clínica. A fim de que possamos manter a dignidade e a credibilidade da ciência e da própria medicina, precisamos extirpar o quanto antes esta maçã apodrecida que corrói as entranhas da medicina e da ciência, sob pena de destruirmos a ambas. Talvez assim – e só assim – eu pudesse voltar a dormir o sono dos justos.
