A história da raposa que toma conta do galinheiro é bem conhecida. Parece que a raposa se aproximou do galinheiro com ares de bondade, mas cheia de segundas intenções. Para convencer as galinhas de que estava regenerada, a raposa contou que havia mudado seus hábitos e agora só comia frutos silvestres. Foi assim que a raposa ofereceu seus serviços para tomar conta do galinheiro. Após alguma reflexão, as galinhas mais cautelosas foram vencidas pela maioria incauta que só pensava em poder viver sem preocupações sob a proteção de uma raposa forte e boazinha. Durante algum tempo a coisa funcionou bem. Até que, em uma noite qualquer, a raposa devorou todas as galinhas de uma só vez. A moral da história é simples: uma vez raposa, sempre raposa.
A decisão das galinhas não parece ter sido uma decisão sábia. Ainda que algumas delas tenham alertado sobre o perigo de confiar na raposa, a maioria não percebeu nenhum risco e só pensou nos aspectos aparentemente positivos da decisão. Também o homem por vezes toma decisões que deixam bastante a desejar. Mesmo entre os homens da medicina, onde os erros podem ter consequências desastrosas, nem todas as decisões são tomadas com sabedoria. Um bom exemplo disso é a transferência da pesquisa clínica para as mãos da própria indústria farmacêutica que produz os medicamentos e os vende a preço de ouro. Muitos profissionais nem mesmo parecem saber que 75% das pesquisas clínicas são atualmente patrocinadas e conduzidas pela própria indústria e que essas pesquisas são potencialmente enviesadas desde o início por razões óbvias[1].

Há quem acredite até mesmo que essa tenha sido uma decisão sábia, uma vez que a indústria tem os recursos necessários para financiar as pesquisas e que isso poderia aliviar o bolso dos governos e dos sistemas de saúde. O que talvez nos custe perceber é que o dinheiro supostamente economizado na realização de pesquisas honestas e independentes provavelmente seja gasto logo ali adiante ao usarmos medicamentos e dispositivos médicos ineficazes ou indecentemente caros com base em estudos enviesados pelos interesses comerciais da indústria. E isso pode ser visto diariamente por todo lado na medicina.
Pensemos no caso dos anticorpos monoclonais contra o amiloide que seriam usados para tratar a doença de Alzheimer, como o aducanumabe e o lecanemabe. Os estudos realizados pela própria indústria e já publicados – pois nunca conheceremos os eventuais estudos negativos que nunca serão publicados por isso não ser do interesse da indústria – mostraram uma redução tão miserável na progressão da doença que nem mesmo é passível de ser detectada clinicamente[2]. Ainda assim, alguns países já aprovaram as drogas e provavelmente gastarão em poucos meses o valor que poderiam ter aplicado em um estudo comprovatório que evitaria um desperdício enorme de recursos com uma droga potencialmente inútil usada em larga escala. Ao que parece, essas drogas não demonstrariam nenhum efeito benéfico relevante e jamais seriam aprovadas para uso clínico amplo se as pesquisas fossem realizadas de forma honesta por pesquisadores que não fossem pagos pela indústria e com desfechos clínicos suficientemente relevantes a ponto de fazer diferença na vida dos pacientes e de seus familiares.
A essa altura já deve estar claro para o leitor a relação entre médicos, raposas e galinheiros. É evidente que colocamos a raposa para tomar conta do galinheiro no exato momento em que confiamos a pesquisa médica à própria indústria farmacêutica. Isso porque quem detém o controle da pesquisa clínica, em última análise determina em grande medida onde serão gastos os recursos do sistema de saúde. Como as condutas médicas costumam ser, sempre que possível, baseadas na ciência, no final das contas demos à indústria farmacêutica o poder de decidir sobre o que devemos ou não prescrever aos nossos pacientes. Não chega a ser surpresa que a humanidade tome uma quantidade de medicamentos jamais vista e, apesar disso, esteja cada vez mais doente. Se ainda considerarmos que a indústria tem liberdade para estabelecer preços abusivos para suas drogas e que oferecemos 20 anos de exclusividade comercial com base nas atuais leis de patentes, fica fácil entender o motivo de estarmos, além de doentes, cada vez mais empobrecidos.
Um dos maiores escritores de histórias infantis, o dinamarquês Hans Christian Andersen, dizia que tais histórias são escritas “para que as crianças durmam e para que os adultos despertem”. O mesmo ocorre com a fábula da raposa e do galinheiro. Esperamos que a medicina desperte o quanto antes desse estado de profundo torpor e perceba que ela necessita desesperadamente recuperar o controle da ciência médica. Não parece nada sábio “economizar” alguns milhões na realização de pesquisas clínicas e gastar bilhões logo adiante usando medicamentos potencialmente inúteis ou de preço indecente. É preciso perceber que a indústria farmacêutica, como qualquer outro tipo de empresa que opere em um universo capitalista, nunca teve qualquer interesse genuíno na produção de conhecimento científico, mas sim em lucrar o máximo com a venda de seus produtos. E, se para isso ela tiver que distorcer a ciência, é isso que será feito. Ou seja, a moral da história é sempre a mesma: uma vez raposa, sempre raposa.

[1] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846