Os médicos da geração Q

Existe uma ideia bastante comum de que as pessoas pertencem a gerações que as identificam como X, Z ou sei lá o quê. Não está claro como se chegou a esta ou aquela classificação. Mas os nomes pegam e, no final das contas, também nós nos “pegamos” falando que fulano é da geração X e sicrano é da geração Y, o que poderia explicar quase qualquer tipo de comportamento que a pessoa em questão adote. Se isso tudo parece fazer algum sentido, é menos pela letra escolhida para designar as gerações do que pelo fato de que as pessoas não nascem em um vácuo social e cultural. Assim, todos nós temos comportamentos mais ou menos parecidos com os das outras pessoas de nossa época.

Pensando nisso, a medicina também poderia ter uma subdivisão em supostas gerações, conforme a época em que cada profissional se formou e começou a praticar a arte da medicina. Existiria, por exemplo, uma geração de médicos – a qual pertenço, embora muitas vezes me sinta como um selvagem – que se formou até a virada do século e que, dessa forma, já passa dos 40 anos de idade. Essa é a geração que tem tido a oportunidade de tomar decisões importantes para o futuro da medicina nas últimas décadas. Eu a chamaria de “geração Q”, não porque a letra “Q” signifique algo especial, mas simplesmente por sua função de pronome relativo (“que”), relacionando os sujeitos aos seus devidos predicados, de uma maneira tão forte que não há como negar a nossa responsabilidade enquanto sujeitos pelos predicados que escolhemos.

Assim, nós – médicos com mais de 40 anos – seríamos os “médicos da geração Q”.

Somos os médicos da geração Q deturpou a ideia original da medicina baseada em evidências (MBE)

Quem viu nascer a bela ideia original de Sackett e colaboradores no início da década de 1990 lembra com precisão de seus três pilares de cores diferentes, mas de mesma dimensão. No conceito inicial dava-se igual importância à experiência clínica do médico, aos valores e preferências pessoais dos pacientes e às evidências trazidas pela literatura científica. Com a evidente hipertrofia do pilar das evidências científicas e o gradual enfraquecimento dos pilares referentes à experiência clínica e às preferências dos pacientes, ameaçamos causar a ruína de toda a estrutura da MBE. Além disso, nosso apequenamento enquanto médicos e nosso afastamento dos pacientes acabou preparando o terreno para a invasão da indústria e para a mercantilização da saúde, o que não parece estar sendo bom para a saúde de ninguém.

Somos os médicos da geração Q entregou a pesquisa clínica para a própria indústria

Nem em seus piores pesadelos, pessoas como David Sackett e Archie Cochrane poderiam imaginar que entregaríamos a pesquisa clínica para a própria indústria farmacêutica e de dispositivos médicos, com todos os vieses e distorções que daí resultam. Além disso, ao cometermos esse erro acabamos por justificar o gradual desmanche da pesquisa pública, pois é bem mais útil aos governos que a pesquisa seja privatizada e represente um gasto a menos. O que os médicos e governantes não consideraram é que, a partir do momento em que a própria indústria passa a pagar os pesquisadores, delinear estudos tendenciosos e escolher o que publicar, ela fará de tudo – mesmo o que seja moralmente reprovável – para aprovar seus mimos terapêuticos, além de poder vendê-los a preço de ouro uma vez que detém o poder de produzir toda a informação científica referente ao tema.

Somos os médicos da geração Q permitiu a abertura de “milhões” de vagas em faculdades de medicina

Somos também a geração que permitiu que se transformasse a educação médica basicamente em uma atividade caça-níqueis. Nossa complacência aliada à incompetência daqueles que deveriam defender a profissão médica permitiu que se abrissem vagas em instituições sem a menor capacidade para ensinar a arte da medicina. São instituições que muitas vezes não têm nem mesmo hospitais e ambulatórios clínicos onde os alunos possam aprender a prática da profissão e onde os professores são explorados para aumentar o lucro dessas instituições, muitas vezes controladas por grandes conglomerados financeiros que nada entendem das complexidades da medicina. 

Somos os médicos da geração Q permitiu que as tecnologias modernas afastassem médicos e pacientes

Permitimos que as tecnologias modernas nos afastassem fisicamente de nossos pacientes, o que traz dificuldades gritantes para a execução de nossa atividade clínica. Além disso, permitimos que as tecnologias de “intiligência” artificial (IA) invadissem abruptamente a profissão sem termos o mínimo conhecimento de seus eventuais benefícios e dos múltiplos possíveis danos causados a médicos e pacientes em médio e longo prazo, o que talvez venhamos a descobrir quando já for tarde demais e não tivermos mais como voltar atrás em nossas escolhas.

Somos os médicos da geração Q criou o famigerado “instagram médico”

Para piorar as coisas, criamos um tal “instagram médico” onde picaretas de todo tipo alardeiam curas milagrosas para doenças inexistentes ou para males sabidamente incuráveis. Além disso, existem os metapicaretas que vendem cursos onde ensinam aos jovens aspirantes a charlatães as suas técnicas mirabolantes. Isso tudo não apenas dificulta muito o trabalho daqueles profissionais que se esforçam para agir de maneira sensata em sua prática diária, mas também acabará por colocar um dos últimos pregos no caixão da medicina como atividade humana fundamental.

Enfim, se não for mais possível voltarmos atrás em algumas de nossas tolices, que ao menos os médicos do futuro – se houver medicina daqui a algumas décadas – nos perdoem por toda essa estupidez.