Até que enfim criaram a pré-obesidade.[1] E já não era sem tempo. Afinal, como toda “doença” que se preze, a obesidade também deveria ter sua fase pré-clínica, aquele período valioso em que se pode lucrar muito tratando pessoas que nem mesmo estão doentes e provavelmente nunca adoecessem mesmo na ausência de qualquer tratamento. Há quem diga que a empreitada de criar a pré-obesidade é puramente altruísta, mas há razões de sobra para termos dúvidas.
A sugestão de considerarmos a obesidade como doença é coisa bem recente. A ideia de que ela deveria ter uma fase pré-clínica (a “pré-obesidade”) é ainda mais nova, mas está longe de causar surpresas. O que está bastante claro é que essas ideias surgiram exatamente no momento em que a indústria colocou no mercado uma nova classe de drogas que custam uma fortuna e, embora possam trazer benefícios temporários em nível individual, colocam em risco a sustentabilidade dos sistemas de saúde[2] e jamais resolverão a epidemia de obesidade.[3]
Isso demonstra que o poder econômico exercido pela indústria sobre a medicina e a ciência tem uma força enorme, sendo capaz de moldar narrativas e até mesmo criar doenças ou “pré-doenças”. A mídia noticiou recentemente a fortuna investida pela indústria farmacêutica na compra de “apoio” entre os profissionais de saúde da área da obesidade. Segundo a linguagem usada, o fabricante dessas drogas emagrecedoras teria feito “chover dinheiro” na conta de alguns profissionais considerados “formadores de opinião” para convencer seus pares de que a obesidade é uma doença verdadeira que deveria ser tratada com medicamentos específicos.[4]

A ideia que agora justificaria a mudança de abordagem diagnóstica e a criação da “pré-obesidade” seria a imprecisão no uso do índice de massa corporal (IMC) como ferramenta isolada para a classificação da obesidade e o risco de sobrediagnóstico com o método, o que pode ocorrer no caso de pessoas com peso corporal elevado devido a uma grande proporção de massa magra de origem muscular ou até mesmo em mulheres com mamas volumosas. Os proponentes da nova empreitada sugerem o uso combinado do IMC com outras medidas, como a circunferência abdominal e, até mesmo, exames de imagem de maior custo que quantificariam a proporção de gordura corporal. Mas convenhamos que a diferenciação entre uma pessoa claramente obesa e um halterofilista turbinado não exige muito esforço por parte de um profissional minimamente astuto.

O mais provável é que a “pré-obesidade” se junte a tantas outras “pré-doenças” já criadas pela medicina em sua sanha de transformar todo ser humano em um paciente que exige cuidados clínicos continuados e que consome produtos e serviços médicos. Nesse grupo seleto estão entidades como o “pré-diabetes”, a “pré-hipertensão” e a “pré-demência”, entre várias outras. Na prática, a criação dessas “pré-doenças” acaba aumentando o sobrediagnóstico e enchendo os consultórios médicos de gente sadia e preocupada usando preventivamente medicamentos para evitar doenças que talvez nunca se manifestassem. Dito de outro modo, os novos “pré-doentes” são pessoas saudáveis que passam a usar medicamentos para evitar que desenvolvam uma determinada doença e tenham que algum dia usar aqueles mesmos medicamentos que já usam desde agora. Tudo o que fizemos foi antecipar o relógio da doença e os lucros já aviltantes da indústria.
Enquanto os profissionais mais parcimoniosos reservam o uso dessas drogas para casos específicos, há quem defenda abertamente o uso mais amplo dos agonistas de GLP-1, o que parece ser especialmente comum entre profissionais que de alguma forma lucram com o seu uso, seja por terem enchido o consultório de ávidos consumidores de “canetas que emagrecem” ou por receberem dinheiro da indústria na forma de honorários, viagens e outros mimos. Além disso, as próprias entidades de classe, como as associações de especialistas na área, aceitam grandes quantias oriundas dessa mesma indústria para financiar suas atividades. Convenhamos que nada disso contribui para aumentar a credibilidade da ciência, dos profissionais e das associações médicas.

Não é preciso ser um especialistas em história da medicina para lembrar que os passos seguidos nas “pré-doenças” são sempre muito parecidos: primeiro cria-se uma doença e logo se justifica o uso de uma determinada droga ou classe terapêutica. Com a porta aberta, o passo seguinte visa satisfazer a ganância interminável da indústria e ampliar o uso dessas drogas. Para isso, nada melhor que criar pré-doenças, que nada mais são do que justificativas para se usar ainda mais precocemente drogas muitas vezes caras e com efeitos colaterais não totalmente conhecidos em pessoas não necessariamente doentes. Não será nenhuma surpresa se os especialistas no assunto recomendarem o uso dos agonistas de GLP-1 para “pré-obesos com fatores de risco”.
Além disso, a indústria das “canetas que emagrecem” foi ainda mais longe dessa vez e atualmente luta para expandir o prazo das patentes[5] – que, na prática, impedem o surgimento de drogas genéricas de menor custo – e para aumentar (triplicar) a dose[6] do fármaco usada nos tratamentos a fim de potencializar seus indecentes lucros. É importante nunca esquecermos que um estudo recente da organização Médicos Sem Fronteiras demonstrou que essas drogas vendidas a preço de ouro pela indústria têm um custo de produção estimado até 400 vezes menor que o valor cobrado, o que torna toda essa empreitada ainda mais nojenta.[7]
Enfim, a “pré-obesidade” agora se junta a outras entidades inventadas pela medicina em sua sanha de transformar a humanidade toda em potenciais consumidores de medicamentos e serviços médicos. O que todas as “pré-doenças” têm em comum é serem resultado de um misto de ganância empresarial e ansiedade clínica que pouco beneficia as pessoas individualmente e a sociedade. Além disso, a cortina de fumaça criada pela solução fácil das “canetas que emagrecem” nos impede de enxergar e de agir sobre as verdadeiras causas da epidemia de obesidade, como o consumo de alimentos ultraprocessados e nosso sedentarismo epidêmico. E isso tudo fica ainda mais asqueroso quando quem defende o diagnóstico precoce e a solução farmacológica para a (pré)-obesidade aceita qualquer tipo de benefício da indústria que produz essas drogas.

[1] https://www.thelancet.com/commissions/clinical-obesity
[2] https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2815919
[3] https://bjgp.org/content/73/733/365
[4] https://www.reuters.com/investigates/special-report/health-obesity-novonordisk-doctors/
[5] https://www.infomoney.com.br/business/novo-nordisk-tenta-prorrogar-patente-do-ozempic-no-brasil-diz-jornal/
[6] https://www.globenewswire.com/news-release/2025/01/17/3011376/0/en/Novo-Nordisk-A-S-Semaglutide-7-2-mg-s-c-achieved-20-7-weight-loss-in-the-STEP-UP-obesity-trial-and-18-7-regardless-of-treatment-adherence.html
[7] https://www.theguardian.com/global-development/2024/mar/28/drug-companies-diabetes-drugs-medicines-ozempic-trulicity