Tenho por hábito não escrever sobre casos clínicos reais, mas por vezes isso é necessário. Não tanto para discutir diagnósticos, mas talvez para refletir sobre o rumo da medicina ou a forma como ela vem sendo praticada na vida real. Afinal de contas, o que nos interessa não é tanto o que aparece nos periódicos científicos e menos ainda as picuinhas das redes sociais, mas sim o cuidado que temos oferecido às pessoas que dele necessitam. E tal cuidado às vezes está muito aquém das necessidades dessas pessoas.
Recentemente, um paciente de 70 anos e que já consulta comigo há muitos anos foi acometido de dor abdominal intensa e procurou um serviço de emergência. Após o atendimento e já em casa, Roberto entrou em contato e combinamos uma consulta para o dia seguinte. No horário marcado, ele adentra o consultório com muita dor abdominal, ainda nauseado e bastante abatido. Como a dor se localizava no quadrante superior direito do abdome, não foi difícil levantar a hipótese de que sua vesícula biliar estava agudamente inflamada (colecistite aguda), ainda mais considerando seu histórico conhecido de colelitíase e demonstrando claramente o famoso “sinal de Murphy” ao exame clínico do abdome, o qual muitos cirurgiões consideram até mesmo mais importante que um exame de imagem para o diagnóstico de colecistite aguda.
Ocorre que este não era o caso do profissional que atendera Roberto na emergência. Para minha surpresa e pavor, ele afirmou que eu tinha sido “a primeira pessoa a colocar a mão em sua barriga”. Em nenhum momento os médicos da emergência o examinaram, preferindo partir logo para a realização de uma tomografia computadorizada, a qual pouco ajuda em casos de doença biliar aguda como a dele. Para piorar a situação, os profissionais criaram um hipótese de trabalho de “diverticulite aguda”, o que, além de não fazer qualquer sentido à luz do quadro clínico e do exame físico, também foi descartado pela tomografia, a qual descrevia formalmente não haver sinais de diverticulite aguda. Ainda assim, o pobre homem foi liberado para casa com tratamento para uma improvável diverticulite.
No final das contas, encaminhei Roberto para outro serviço de emergência com o diagnóstico de colecistite descrito no laudo de encaminhamento, e ele acabou sendo prontamente hospitalizado, recebendo antibióticos adequados e realizando a extração da vesícula biliar ainda em tempo hábil. Roberto hoje está bem, mas poderia ter morrido, não tanto pela doença que o acometeu, mas pela conduta canhestra a que foi submetido no primeiro atendimento de emergência.
Não se trata tanto de uma questão técnica, mas de demonstrar um interesse mínimo pela pessoa que consulta. É óbvio que uma pessoa que consulta com dor abdominal aguda deve ter seu abdome examinado antes de se levantar hipóteses diagnósticas e de solicitar qualquer exame de imagem. Isso é algo indiscutível. E nem mesmo a desculpa da falta de tempo poderia justificar o descaso com o paciente, uma vez que se gasta muito mais tempo para enfrentar as burocracias digitais e solicitar uma tomografia (inútil) do que para examinar o abdome de um paciente. Roberto teve a sorte de ter um médico de confiança acessível, coisa infelizmente cada vez mais rara no sistema de saúde atual.

A triste realidade é que casos assim não são exatamente raros. O que nos leva a imaginar quantas pessoas têm sua saúde prejudicada todos os dias por não terem sido adequadamente avaliadas no momento crítico da evolução de suas doenças. É evidente que há doenças difíceis de diagnosticar e até mesmo problemas clínicos que ainda não evoluíram suficientemente a ponto de serem detectados pelo profissional em determinado momento. Além disso, mesmo bons médicos podem discordar quanto a um determinado diagnóstico. Mas este certamente não era o caso de Roberto. E nada disso justifica que o profissional se abstenha de seguir o ritual de uma consulta médica, o que inclui a entrevista clínica e um exame físico adequado.
O ritual da medicina tem algo de mágico. Não se trata apenas de realizar manobras diagnósticas específicas, mas sim de demonstrar um interesse genuíno pela pessoa e sua história, de tocar seu corpo à procura de sinais de alguma doença ou simplesmente para transmitir um pouco de calor humano. Infelizmente, parece que a medicina vem perdendo um tanto dessa magia. Será que os novos currículos médicos passaram a dar mais importância à interpretação de exames de imagem que a uma boa anamnese e um exame físico básico? Será que o imperativo de gerar lucro para os serviços de saúde faz com que os profissionais solicitem exames desnecessários sem nem mesmo encostar nos pacientes? Será que a recente pandemia, com sua ética higienista de distanciamento, deixou marcas indeléveis no espírito médico? Ou será que simplesmente estamos perdendo nossa capacidade de tocar e de compreender verdadeiramente o outro ser humano que busca a nossa ajuda?
O que não pode ser é que deixemos de colocar a mão na barriga de alguém que consulta por dor abdominal. O que não pode ser é que solicitemos uma tomografia de tórax para um paciente com febre e tosse sem nem ao menos auscultar seus pulmões. O que não pode ser é que uma pessoa que consulte por alguma angústia existencial não tenha oportunidade de contar sua história e desafogar seu peito. O que não pode ser é que nos habituemos a isso tudo a ponto de permitir que a arte médica seja substituída pela fria tecnologia. O que não pode ser é que deixemos que a ética capitalista defina as condutas médicas. O que não pode ser é que aceitemos a narrativa de que máquinas são de alguma forma melhores que profissionais de carne e osso para diagnosticar pessoas que sofrem. O que não pode ser é que os médicos aceitem condições de trabalho aviltantes que não permitem que eles exerçam a medicina de forma minimamente adequada. O que não pode ser é que esqueçamos do poder de cura inerente ao toque humano. O que não pode ser é que as pessoas sofram duplamente por receberem diagnósticos errados e por verem seu sofrimento negligenciado pelos profissionais. E o que não pode ser é que esqueçamos de nosso compromisso ético de acolher e confortar o outro ser humano à nossa frente.