Prólogo
Temos sido ingênuos, para dizer o mínimo, ao confiarmos de maneira tão simplória na neutralidade do uso das máquinas e na benevolência daqueles que insistem em nos empurrar as mais variadas tecnologias médicas modernas, em especial aquelas que afastam fisicamente médicos e pacientes e que utilizam a “inteligência” artificial (IA) para esvaziar de sentido a atividade médica. O momento atual da medicina é bastante difícil, considerando as inúmeras forças que tentam ganhar espaço e lucrar muito ao enfraquecer as relações de confiança envolvidas na prática da profissão. Algumas dessas forças são facilmente perceptíveis, enquanto outras ficam evidentes apenas quando apresentadas na forma de uma narrativa mais ou menos coerente. Assim, talvez facilite a nossa compreensão se a tragédia atual da medicina for narrada em cinco atos.

1º Ato – A pandemia e a telemedicina
A recente pandemia pode ser mais bem compreendida como uma tragédia que se assentou sobre uma crise sanitária e social que já se arrastava há bastante tempo, representada por médicos desiludidos, serviços de saúde desmantelados e desigualdades sociais gritantes. A telemedicina já aguardava por regulamentação há bastante tempo, o que significa que – em que pese suas potenciais utilidades práticas – ela não representava até esse momento nenhuma prioridade para os órgãos reguladores do sistema de saúde. Com a crise instalada e a proibição formal de as pessoas transitarem livremente pelas ruas, a telemedicina seria uma alternativa temporária adequada para que muitos obtivessem algum tipo de cuidado médico. Porém, em vez de retornarmos ao estado de coisas pré-pandemia – o que nos possibilitaria usar de muita parcimônia para avaliar os prós e contras de sua eventual regulamentação e adoção –, o que vimos nos últimos anos foi um avanço avassalador dos serviços de virtualização dos cuidados de saúde como resultado da pressão política e econômica de uma indústria poderosa. Uma forma de compreender essa rapidez toda é como sendo uma manifestação do que Naomi Klein denomina de “doutrina do choque”,[1] um conjunto de estratégias usadas para transformar crises em oportunidades para a obtenção de lucros e a implementação de políticas neoliberais, o que pode levar à perpetuação de ciclos de crises variadas – p. ex., sanitárias, econômicas ou militares – apenas com a intenção de criar mais oportunidades para o chamado “capitalismo do desastre”.
2º Ato – A (re)invenção da IA
A ideia da inteligência artificial não é exatamente nova. Já na década de 1970, os cientistas da computação lidavam com o tema. O que aconteceu de novo foi o encontro de uma variante generativa de IA com um mundo que ainda tentava superar uma crise sanitária, social e econômica. Mais uma vez, a doutrina do choque e o capitalismo do desastre parecem ter sido fundamentais para que, a partir de 2023, uma tecnologia até então desconhecida do grande público passasse a ser percebida como algo imprescindível para a própria existência da humanidade. É importante lembrar que mesmo uma novidade impressionante como a internet levou décadas para ser aceita e adotada pelo grande público. Isso foi bem diferente com a IA, a qual passou em poucos meses de desconhecida a onipresente na vida das pessoas. Porém, a pressa não costuma ser uma boa conselheira e deveríamos ter sido muito mais cuidadosos na avaliação e (eventual) adoção das tecnologias de IA dentro e fora da medicina. Aqui cabe lembrar um dos pioneiros da IA, Joseph Weizenbaum, o qual asseverou há muitas décadas que certas tarefas não deveriam ser realizadas pelas máquinas mesmo que elas conseguissem realizá-las.[2] Weinzenbaum parecia conhecer como ninguém o poder desumanizante que as tecnologias podem ter.
3º Ato – A criação de uma narrativa falaciosa
Antes que a IA pudesse ameaçar o trabalho e a vida dos seres humanos seria necessário criar uma narrativa que sugerisse tal superioridade. Na medicina, os primeiros passos dessa narrativa foram dados quando o JAMA[3] publicou um estudo que comparava médicos humanos e máquinas turbinadas pela IA generativa ao responderem questionamentos de pacientes em chats virtuais. Segundo a interpretação trazida pelos autores, os pacientes teriam considerado que as máquinas eram mais empáticas que os médicos. O que passou despercebido é que o ambiente de chats virtuais não é o hábitat de médicos humanos, os quais foram preparados para atender pessoas também de carne e osso que sofrem de verdade e que necessitam, além de palavras, de um olhar mais próximo, de um abraço e de um toque que transmita o calor humano que (ainda) temos. Como já foi comentado em outro meu texto,[4] essa comparação entre médicos e máquinas em chats de computador é tão esdrúxula quanto comparar homens e tatus e concluir que os tatus são “melhores” porque cavam buracos mais rapidamente. Uma pessoa minimamente lúcida diria que homens foram feitos para caminhar na superfície e não para cavar buracos debaixo da terra. O mesmo ocorre em relação a médicos e chats de internet. O problema é que a medicina não reagiu à altura dessa ameaça e novos estudos tendenciosos e eticamente sofríveis foram publicados e pareceram dar força à narrativa falaciosa de que máquinas podem ser melhores e até mesmo substituir médicos de carne e osso sem prejuízo à saúde das pessoas e à própria medicina.

4º Ato – A medicina renderizada
Como tudo o que é ruim sempre pode piorar, agora a medicina está sendo ameaçada por uma “renderização”, ou seja, a própria imagem dos médicos está sendo transformada em arquivos de dados virtuais que viajam milhares de quilômetros, ultrapassando as barreiras físicas e técnicas da telemedicina já conhecida e se “materializando” na frente de pobres pacientes que não conseguem acesso a médicos de carne e osso. A última novidade, segundo artigo recente do Wall Street Journal,[5] seria o atendimento através de hologramas médicos. Por meio dessa tecnologia, já em uso nos Estados Unidos, a imagem dos médicos é projetada na forma de hologramas em centros de saúde de locais mais distantes e permitem que os pacientes consultem com médicos que estão a milhares de quilômetros. Em outras palavras, como não conseguimos oferecer condições de trabalho adequadas para que os profissionais se desloquem para trabalhar em rincões distantes, vamos “resolver o problema” com hologramas ridículos que falam e que mais se parecem com oráculos fantasmagóricos do que com médicos de verdade.

5º Ato – A medicina ridicularizada
A ideia de substituir médicos de verdade por hologramas já poderia ser suficientemente ruim ou parecer apenas uma bizarrice de alguma startup de tecnologias médicas, não fosse o fato, divulgado recentemente pela Wired,[6] de que o Secretário de Estado responsável pelo sistema de saúde estadunidense – o midiático e cognitivamente neutro Dr. Oz – teria defendido em uma reunião oficial a ridícula ideia de usar avatares médicos alimentados por IA em substituição a médicos de carne e osso para o atendimento das pessoas. A justificativa do idiota da vez é como sempre o famigerado e vil metal: não haveria por que gastar 100 dólares em uma consulta com um médico humano para diagnosticar um caso de diabetes se podemos obter o “mesmo resultado” usando uma tecnologia que envolva avatares e IA, pela qual se pagaria apenas 2 dólares por hora. Para muita gente, pode até ser difícil acreditar em tamanha insensatez e imbecilidade, mas infelizmente essas são as pessoas escolhidas para gerir os serviços de saúde da maior “potência” mundial e que infelizmente acabam servindo de modelo de sucesso para outros pobres diabos que governam nações e administram sistemas de saúde pelo mundo afora. E assim, tragicamente, caminha a humanidade.
Epílogo
Quanto tempo ainda será necessário para que a medicina acorde e perceba o tamanho do engodo representado pela adoção apressada e descuidada dessas tecnologias modernas baseadas em IA? Não se trata de abrir mão do uso da IA na medicina, mas simplesmente de reconhecer que sua eventual implementação deveria ser bem mais cuidadosa, gradual e pontual do que o que estamos vendo. Enquanto os médicos ficam embasbacados com as peripécias da IA no curto prazo, essa visão míope permite que a indústria de tecnologia siga tomando o espaço que já foi ocupado por pessoas de carne e osso. Que essa indústria tenha pressa em vender seus risíveis produtos é algo absolutamente compreensível. O que não se pode entender é que a medicina observe a tudo isso placidamente sem uma análise cuidadosa das possíveis consequências de longo prazo dessas tecnologias. O que não se pode aceitar é que a medicina seja ridicularizada como quando um mandatário qualquer sugere que médicos de carne e osso possam ser substituídos por hologramas e avatares sem prejuízo para a saúde da população. Será que ainda temos tempo para reconquistar o espaço perdido pelos seres humanos – médicos e pacientes – na medicina? Ou seguiremos de braços cruzados vendo a medicina ser ridicularizada e descartada? Até quando seremos tão estúpidos?

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Shock_Doctrine
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Computer_Power_and_Human_Reason#:~:text=Computer%20Power%20and%20Human%20Reason%3A%20From%20Judgment%20to%20Calculation%20is,will%20always%20lack%20human%20qualities
[3] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2804309
[4] https://andreislabao.com.br/2023/06/10/sobre-burros-e-tatus/
[5] https://www.wsj.com/articles/the-hologram-doctor-will-see-you-now-a68a504f?mod=Searchresults_pos1&page=1&utm_source=substack&utm_medium=email
[6] https://www.wired.com/story/dr-oz-ai-health-care-medicare-cms-town-hall/