Os paradoxos da medicina

Os paradoxos são aqueles raciocínios que parecem dar um nó em nossas ideias gerais sobre o mundo. Eles também costumam desafiar as linhas de pensamento habituais do ser humano. Assim, os paradoxos nos causam um certo desconforto. Mas eles podem ser ferramentas muito úteis para exercitar nosso raciocínio e questionar nossas crenças mais arraigadas.

O paradoxo da multiplicação de doenças

Uma das características da sociedade moderna é a profusão de doenças físicas e mentais, as quais proliferam a despeito de termos supostamente alcançado níveis inéditos de inovação em termos de tratamentos eficazes contra todos esses mesmos males que seguem proliferando como nunca. Pense, por exemplo, no caso da depressão: segundo a narrativa hegemônica, desenvolvemos medicamentos muito eficazes para o tratamento da depressão e de outras tantas doenças mentais e, no entanto, nunca tivemos tantos casos de doença mental prevalentes na sociedade como hoje. E o mesmo raciocínio vale para tantos outros males modernos, como a obesidade, o diabetes, as cardiopatias e o câncer: aparentemente temos tratamentos cada vez melhores e, apesar disso, problemas como obesidade, diabetes, infartos e câncer grassam como nunca na sociedade. A impressão é que perseguimos um alvo, mas quanto mais andamos em sua direção, mais ele se afasta. Isso acontece porque, mesmo se considerarmos verdadeira a hipótese de que muitos desses medicamentos são realmente eficazes, uma vez que (quase) nada temos feito para reverter as causas básicas das doenças citadas em nível de sociedade (desigualdade social, poluição, ultraprocessados, sanha de produtividade, virtualização da vida social, etc.), é natural que elas sigam aumentando. E, se tal aumento superar o eventual benefício clínico desses medicamentos em nível individual, o resultado será um aumento líquido na prevalência de todas essas doenças[1]. Talvez o mais importante seja compreendermos que pode ser pouco útil tratar apenas em nível individual aquelas doenças que têm um importante componente social, a não ser que o real objetivo da medicina seja engordar as burras da indústria. Mas isso também seria um enorme paradoxo.

O paradoxo do benefício individual rarefeito

No cerne da nossa visão atual da medicina está a discutível ideia de que o eventual benefício demonstrado com o uso de determinados tratamentos em estudos que comparam grupos de pacientes teria o mesmo significado clínico no paciente individual. Embora tais estudos possam evidentemente embasar nossa decisão clínica, eles não representam a decisão per se. Para isso, é preciso reconhecer os outros pilares de igual importância na MBE*, os quais representam a experiência clínica do profissional e os valores e preferências dos pacientes. Além disso, nossa tendência para confundir populações e indivíduos tem nos levado a aceitar NNTs** enormes nos tratamentos que administramos em nível individual, o que faz com que apenas uma ínfima parcela dos pacientes tratados perceba qualquer benefício clinicamente relevante com os tratamentos administrados. A imensa maioria de nossos tratamentos e indicações clínicas mostra NNTs na faixa de dezenas ou centenas[2]. No caso hipotético de um NNT de 50 (um valor incomumente baixo na medicina atual) para redução de, digamos, infartos, isso significaria que apenas um em cada 50 pacientes apresentará o benefício clínico real e que 98% dos pacientes tratados não perceberão qualquer benefício clínico verdadeiro. Isso porque a mera redução de risco não significa um benefício real e palpável em nível individual: alguém com um risco de infarto de 7,5% em 10 anos é exatamente igual a outra pessoa com risco de 10%. Nesse caso, embora 2,5% das pessoas se beneficiassem de fato da intervenção medicamentosa (redução do risco absoluto), 97,5% delas não veriam benefício e 7,5% delas teriam até mesmo um infarto apesar de usarem a intervenção proposta. E, novamente, o mesmo raciocínio vale para todas as nossas intervenções. Ou seja, a ideia de que nosso paciente individual terá o mesmo benefício do grupo de pacientes descritos em um estudo é uma falácia que nos leva a exagerar na estimativa de benefício de nossas intervenções e abre até mesmo espaço para o charlatanismo. Isso porque, com a rara exceção daqueles poucos pacientes representados pela redução de risco absoluto, todos os outros pacientes seguiriam suas vidas independentemente de receberem o melhor tratamento proposto pela medicina séria ou uma infusão qualquer preparada por algum charlatão. E, convenhamos, usar intervenções com as quais a imensa maioria das pessoas não percebe qualquer benefício individual relevante é um paradoxo terapêutico enorme.

O paradoxo da defesa de uma ciência indefensável

A ciência é sem sombra de dúvidas uma das maiores criações da humanidade. É em grande parte devido aos avanços proporcionados pelas descobertas científicas que temos evoluído e obtido melhorias em termos de qualidade e quantidade de vida para as pessoas. No entanto, quando falamos em ciência de verdade, queremos nos referir a algo bem diferente do que vemos no cotidiano da ciência médica. Quem pensa em ciência e no uso do método científico rigoroso para chegar a grandes descobertas verdadeiras imagina pesquisadores imparciais e isentos de conflitos de interesse tentando responder a perguntas clinicamente relevantes e que, para isso, usam delineamentos científicos conduzidos da melhor maneira possível para chegar a uma resposta útil à sociedade. Ocorre que nada pode estar mais distante da ciência médica atual. Embora ainda existam algumas ilhotas de ciência verdadeira na medicina (mormente algumas instituições públicas e acadêmicas), a pesquisa clínica foi completamente sequestrada pela indústria, sendo estimado que pelo menos 75% das pesquisas clínicas são patrocinadas e conduzidas pela própria indústria que produz e vende os produtos analisados[3]. Ou seja, um viés enorme que representa um verdadeiro elefante branco na sala da medicina atual. E engana-se quem considerar que a pesquisa clínica da indústria é ciência de verdade. Como se não bastasse o conflito de interesses financeiros gigante, em vez de responder a perguntas clínicas relevantes e conduzir estudos imparciais, o que a indústria faz é responder a uma questão comercial e burocrática muito simples: como posso delinear um estudo de maneira a mostrar algum benefício com minha droga potencialmente rentável e obter a aprovação das agências reguladoras? Essa pergunta enviesada – e nada científica – é o início de uma cascata de vieses que vão desde delineamentos cretinos[4] [5], passando por conduções problemáticas e terminando com a publicação e a divulgação sensacionalista dos dados. Ou seja: defendemos atualmente uma ciência indefensável que nem ciência de verdade é. Se quiséssemos de fato defender a ciência médica, a primeira coisa a fazer seria retirá-la imediatamente das garras da indústria farmacêutica e garantir formas de financiamento isentas de viés econômico. Defender essa “ciência” da indústria que aí está é um paradoxo gigante!

O paradoxo de um custo insustentável

Se a ciência que embasa nossas decisões é produzida pela própria indústria que vende medicamentos a preço de ouro, nada mais natural que ela suprima as discussões sobre custos ou procure justificar o uso de drogas indecentemente caras cujo benefício muitas vezes irrelevante é absolutamente desproporcional ao seu custo. Que a indústria faça isso e utilize essa pseudociência atual como ferramenta para conquistar seus objetivos é algo fácil de entender. O que não se compreende é que a medicina avalie as descobertas científicas como se os recursos do sistema de saúde fossem infinitos e sem considerar o custo de cada intervenção tanto em nível individual como em nível de sociedade, desconsiderando ainda os desdobramentos futuros das intervenções eventualmente aprovadas. Aprovar, por exemplo, um novo tratamento biológico para enxaqueca[6] que custa 1.000 vezes mais[7] que um tratamento mais antigo[8] e igualmente eficaz[9] não é exatamente uma ideia inteligente em termos de sustentabilidade do sistema de saúde. E disparates como esse são muito comuns na medicina atual, envolvendo drogas da moda como os anticorpos monoclonais contra amiloide na doença de Alzheimer ou mesmo as famigeradas canetas emagrecedoras. No caso das drogas anti-Alzheimer, elas custam dezenas de vezes mais e seu benefício ainda não estabelecido parece ser menor do que o benefício pífio já estabelecido para as antigas drogas chamadas anticolinesterásicos[10]. No caso das canetas emagrecedoras, seu benefício líquido não é tão diferente das drogas mais antigas como afirmam seus defensores (também eles muitas vezes eivados de conflitos de interesse) e seu custo escorchante dificilmente será sustentável em qualquer sistema de saúde[11]. Aprovar drogas com benefício líquido cada vez menor e de custo cada vez mais exorbitante é certamente um paradoxo insustentável para a medicina.

Enfim, reconhecer pelo menos alguns dos paradoxos gritantes da medicina atual nos poderia ajudar a abordar de maneira mais adequada várias doenças ao reconhecer seus determinantes sociais relevantes, aumentar a eficiência de nossas intervenções terapêuticas ao buscar reduzir o uso desnecessário de medicamentos, resgatar a credibilidade da ciência médica ao devolver seu controle a pesquisadores confiáveis isentos de conflitos de interesse com a indústria e promover a sustentabilidade dos sistemas de saúde ao considerar a relação de custo/benefício de cada intervenção médica em um sistema de saúde com recursos escassos e finitos.

*Medicina Baseada em Evidências.

**Número Necessário para Tratar.


[1] https://andreislabao.com.br/2021/09/19/o-paradoxo-da-multiplicacao-de-doencas/

[2] https://thennt.com/home-nnt/

[3] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846

[4] https://andreislabao.com.br/2022/05/31/dos-delineamentos-cretinos/

[5] https://andreislabao.com.br/2022/06/19/dos-delineamentos-cretinos-ii/

[6] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1705848

[7] https://www.drugs.com/price-guide/aimovig

[8] https://www.ultrafarma.com.br/amitriptilina-25mg-com-30-comprimidos-c1-ems-generico?srsltid=AfmBOooY1W3EvIVTpKoLHG4SME1irUJ19QuHYH2n40YJIQah5kA7QXS3

[9] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/508127/

[10] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2807943

[11] https://andreislabao.com.br/2024/07/13/o-derretimento-do-ozempic/