Não é novidade para ninguém que o chamado “instagram médico” esteja entre as coisas mais abjetas criadas pela medicina atual. No entanto, está claro que nada é tão ruim que não possa piorar. E, para que isso ocorra, muitas vezes basta que exista uma oportunidade para fazê-lo. E isso a medicina – ou, pelo menos, uma parte dela – o fez com maestria nos últimos dias: criou um verdadeiro circo em torno do lançamento de uma nova droga emagrecedora (tirzepatida) cujo impacto real na saúde da humanidade será pífio, mas cujo impacto no bolso dos cidadãos poderá ser gigante.
Obviamente, há quem duvide dessa visão pouco entusiasmada ou até mesmo francamente pessimista em relação às famosas canetas emagrecedoras. Em parte, essa visão deriva da experiência prévia da humanidade com inúmeras outras drogas que prometiam acabar com os males que se dispunham a tratar, como no caso dos antidepressivos, cuja euforia inicial prometia acabar com a depressão na sociedade quando o que vimos com o passar dos anos foi exatamente o contrário.
No caso específico da obesidade, inúmeras outras drogas já foram lançadas com resultados terapêuticos não muito diferentes das drogas atuais nos estudos científicos e com expectativas quase tão infladas como as atuais. Também é preciso notar que nem mesmo a cirurgia bariátrica – modalidade terapêutica eficaz em nível individual – conseguiu reduzir a obesidade na sociedade. E nem mesmo a criação de eufemismos como “cirurgia metabólica” ou a recomendação dessa cirurgia altamente mutiladora até mesmo para adolescentes que nem entendem direito seu problema e as repercussões dessa terapêutica em suas vidas mudará o fato de que a obesidade é uma doença da sociedade, e não dos indivíduos. O que essas mudanças mostram é que o resultado líquido da empreitada bariátrica em termos de sociedade tem sido bastante esquálido.
Assim, o lançamento de mais uma caneta emagrecedora no cenário terapêutico da obesidade só poderia ser visto com ressalvas, pelo menos se a humanidade e a medicina tivessem um pouco mais de cautela. Seguindo o velho raciocínio probabilístico daquele famoso reverendo inglês, se nenhuma das outras modalidades terapêuticas conseguiu reduzir a obesidade na sociedade, a chance de que as canetas emagrecedoras o façam é irrisória, para não dizer risível. Isso não significa que elas não tenham algum valor terapêutico em nível individual quando indicadas com muita parcimônia, mas essa não é a ideia que está sendo transmitida pelo circo criado pela medicina e pela mídia em torno da aprovação de mais uma caneta mágica.
Após um evento online onde (de)formadores de opinião devidamente contratados pela indústria deram seu recado para incautos telespectadores, o pomposo evento presencial de lançamento foi típico de eventos médicos: tudo colorido e cheio de luzes, brilhos e bolhas, rostos sorridentes, muita gente esbelta, roupas de festa e, claro, merchandising para todo lado. O ponto alto – ou baixo, dependendo de onde se observe a dantesca cena – era a representação de uma caneta da referida droga do tamanho de uma pessoa ao lado da qual os doutores posavam eufóricos para logo postar a imagem nas redes sociais, obviamente usando a hashtag do laboratório fabricante da droga para marcar sua presença no evento. Alguns até mesmo abraçavam o fálico objeto que parecia transmitir a eles o poder supremo de controlar o peso das pessoas.
É claro que se trata de um pensamento bastante mágico, mas é assim que funciona a psicopatologia humana. Na verdade, o único poder real que esses profissionais terão a partir de agora será o de controlar o acesso das pessoas comuns a essas drogas, o que pode representar uma enorme fonte de renda extra, mas também significa um conflito de interesses gigantesco e constrangedor para a medicina. É pouco provável que profissionais com algum nível de cumplicidade e comprometimento pecuniário com a indústria consigam analisar com a clareza necessária o eventual benefício dessas drogas em nível individual e populacional, bem como seus possíveis riscos para a saúde e o impacto nas contas públicas e privadas, a fim de julgarem se a chegada de mais uma caneta emagrecedora é motivo para festa ou preocupação.
No final das contas, a impressão que o burlesco evento transmite para o público é bastante ruim. Em primeiro lugar, sugere que a medicina como um todo acredita que essas drogas trarão benefícios duradouros e irão de fato revolucionar o tratamento da obesidade ou reduzir a sua prevalência na sociedade, o que parece contradizer a lógica e o histórico das revoluções anteriores antiobesidade. Além disso, o bizarro evento, com toda sua cara e desnecessária pompa, passa a impressão de que a medicina dá suporte à política de preços aviltantes praticada pela indústria farmacêutica em relação a essas drogas, a qual ignora o fato de que, por exemplo, uma dessas canetas emagrecedoras têm um custo estimado de produção de menos de 1 dólar, embora o valor cobrado seja até 400 vezes maior,[1] o que ameaça a própria sustentabilidade dos sistemas de saúde. Isso sem falar que todo esse foco da medicina e da mídia nas canetas emagrecedoras acaba retirando o foco – e os recursos! – de outras iniciativas que poderiam trazer benefícios amplos e duradouros em termos de sociedade (como políticas públicas relativas a mobilidade urbana, redução de desigualdades econômicas e sociais, ultraprocessados, etc.).
Caberá agora àquela pequena e menos estridente parcela da medicina, que ainda mantém alguma capacidade de pensar sem os estímulos econômicos da indústria, a tarefa de ponderar sobre a melhor maneira de fazer um uso adequado e parcimonioso dessas drogas, aproveitando seus eventuais benefícios em nível individual sem esquecer que essas drogas jamais poderiam ser compreendidas como uma solução ampla e duradoura para o problema da obesidade na sociedade.
O circo está montado, e o que estamos vendo agora é um marketing agressivo e a prescrição da droga para todos que possam pagar por ela. O próximo ato é fazer o sistema de saúde pagar o preço aviltante cobrado pela indústria para fornecer a droga para pessoas que infelizmente não podem nem mesmo escolher o que comem, a forma como se exercitam e a maneira como vivem suas vidas. Se a medicina foi capaz de transformar a aprovação de um fármaco em um evento circense, é importante que a sociedade se mantenha alerta para que o cidadão comum – que em última análise financia todo esse circo – não seja ele mesmo transformado em palhaço.

[1] https://msfaccess.org/jama-network-open-estimated-sustainable-cost-based-prices-diabetes-medicines