Ensaio sobre a miopia

O velho Saramago já nos alertava de que deveríamos ser mais cuidadosos com nossa capacidade de enxergar as coisas adequadamente. Seu famoso “se podes olhar, vê; se podes ver, repara” nos fala da importância de repararmos naquelas coisas que podem passar despercebidas a um olhar desatento ou menos aguçado. Já para quem apresente algum problema refrativo, reparar melhor nas coisas nem sempre é possível. E talvez este seja um dos problemas da medicina atual, em especial no que tange à análise da eficácia de novas intervenções e de suas consequências na sociedade. Vemos muita coisa diariamente, mas reparamos de fato em muito pouco.

Na área da ciência, essa miopia é quase a regra: avaliamos nossas intervenções muitas vezes com base em desfechos clínicos que se desenrolam em prazos tão curtos que é como se enxergássemos apenas o que está a um palmo de nosso nariz, exatamente como acontece com os piores míopes. E essa nossa falta de visão à distância pode nos trazer problemas mais adiante. Um exemplo disso pudemos ver no caso das alardeadas “pílulas da felicidade” que surgiram há algumas décadas. Com base em estudos que avaliaram pessoas tratadas por poucas semanas, acreditamos na solução para um problema existencial crônico e complexo como a depressão. Para piorar as coisas, permitimos que a indústria, a mídia e muitos profissionais vendessem a ideia de que a depressão era causada por um desequilíbrio banal em determinadas substâncias cerebrais que seria rapidamente consertado com um antidepressivo. Demorou algum tempo, mas a ciência acabou desmentindo a falácia do desequilíbrio de neurotransmissores como causa da depressão.[1]

O resultado dessa nossa miopia deprimente nos salta aos olhos hoje pela quantidade crescente de deprimidos na sociedade apesar do uso indiscriminado de antidepressivos e de pessoas que seguem tomando essas drogas durante anos a fio simplesmente por não conseguirem interromper seu uso devido aos efeitos colaterais causados pela tentativa de retirada das drogas. Ao darmos uma importância exagerada para aqueles desfechos ridiculamente curtos dos estudos clínicos iniciais e, principalmente, ao esquecermos de agir sobre as causas existenciais e socioeconômicas que causam a epidemia de depressão moderna, o que fizemos foi permitir que as condições de vida das pessoas piorassem e os problemas sociais se agravassem ainda mais.

Porém, como a miopia é um mal crônico, ela segue prejudicando a visão médica na hora de avaliarmos as inovações terapêuticas. Um caso típico dessa miopia é a forma como estamos analisando os efeitos das chamadas terapias psicodélicas – a mais nova panaceia da “medicina da mente”. Mais uma vez com base em estudos com períodos de seguimento muito curtos, estamos permitindo a entrada gradual e talvez irreversível de inúmeras drogas alucinógenas como se fossem a solução para os mesmos problemas não resolvidos anteriormente com os antidepressivos. Novamente estamos acreditando em estudos potencialmente enviesados – já que muitas vezes patrocinados e conduzidos pela própria indústria que fabrica as drogas – e com desfechos de poucas semanas para embasar a prescrição das drogas psicodélicas e a difusão da ideia estapafúrdia de que encontramos (mais uma vez) a solução para os problemas de sempre.

É até mesmo risível a ideia de que problemas crônicos e complexos da nossa modernidade, como a depressão e a ansiedade, sejam solucionados com drogas alucinógenas que até há pouco tempo eram usadas em festas, como o LSD, o ecstasy (MDMA) e os cogumelos mágicos que fornecem a psilocibina. A menos que acreditemos que fugir da realidade seja um caminho terapêutico válido e sustentável no longo prazo. Além disso, é bastante preocupante imaginar o que pode acontecer com a sociedade daqui a alguns anos se as pessoas usarem alucinógenos de maneira adoidada como ocorreu no caso dos antidepressivos.

Estudos com desfechos de curto prazo oferecem apenas uma visão míope para a solução dos problemas e, a menos que estejamos lidando com problemas de saúde agudos, eles devem ser vistos com muitas ressalvas. Isso não significa que esses estudos sejam inúteis, mas sim que jamais deveríamos supor que os desfechos obtidos pelas intervenções no curto prazo se sustentarão em longo prazo e fora do ambiente altamente controlado dos ensaios clínicos. Além disso, é preciso lembrar da recente crise de opioides que causou a morte de centenas de milhares de pessoas e se baseou em estudos míopes que mostravam que opioides eram analgésicos eficazes quando usados por curtos períodos. O caso dos opioides mostra que drogas viciantes e perigosas podem causar danos enormes quando são amplamente usadas na sociedade, mesmo que esse uso seja (des)regulado pela medicina.[2]

No final das contas, é preciso reconhecer nossa miopia e não supor que um horizonte terapêutico de poucas semanas seja idêntico àquele causado pelo uso crônico e disseminado de drogas potencialmente perigosas e viciantes. A miopia causada por uma ciência imediatista e apressada pode ser corrigida com as lentes do bom senso. Já a opção deliberada por repetir os erros do passado é sinal de loucura e da mais pura cegueira.


[1] https://www.nature.com/articles/s41380-022-01661-0

[2] https://www.thelancet.com/journals/lanam/article/PIIS2667-193X(23)00131-X/fulltext