Rastrear ou não rastrear… eis a questão

Uma das frases mais conhecidas da cultura ocidental é aquela que introduz o famoso monólogo de Hamlet: Ser ou não ser? É nesse momento da história que o príncipe se debate com aquelas questões existenciais que envolvem a possibilidade de vingança no seio da família e o próprio significado da vida e da morte. Seria mais nobre “suportar na mente as flechadas do destino” ou “tomar as armas para enfrentar esse mar de escolhos” que é a vida humana e suas intempéries? Em outras palavras: seria melhor suportar estoicamente as agruras do destino ou devemos recusar os ditames da fortuna e preparar-nos para a luta? O “ser ou não ser” hamletiano é, assim, uma reflexão sobre as escolhas a serem feitas e suas consequências. Há, por certo, escolhas de variada importância na vida humana e nas diversas atividades que desempenhamos. Mas em nenhuma outra área essas escolhas têm consequências tão significativas para a vida das pessoas como na medicina. Assim, nessa época do ano em que as mais famosas campanhas coloridas de prevenção de doenças ocupam todos os espaços midiáticos, podemos também nos perguntar: rastrear ou não rastrear?

O dilema do rastreamento

De maneira geral, quem defende o rastreamento universal para inúmeras doenças acredita que a possibilidade de um diagnóstico precoce é sempre benéfica e deve ser oferecida a um número máximo de pessoas. E isso é geralmente verdadeiro em nível individual: em muitos casos, descobrir mais cedo um câncer tratável pode fazer toda a diferença entre a vida e a morte. Ou seja, Hamlet não se debateria muito tempo com essa questão aparentemente banal. Por outro lado, se Hamlet soubesse que alguns casos de câncer jamais atrapalhariam a vida das pessoas, enquanto outros são intratáveis mesmo quando descobertos mais cedo – seja porque não têm tratamento eficaz ou porque as pessoas diagnosticadas não conseguem acesso aos recursos terapêuticos em tempo hábil –, isso certamente daria um nó na cabeça do príncipe e o atormentaria pelo resto da tragédia.

Já quem defende um olhar mais parcimonioso em relação às campanhas de prevenção costuma considerar não apenas os benefícios do diagnóstico precoce em nível individual, mas também as consequências prejudiciais dele em nível populacional. E isso pode incluir, entre outras coisas, o sobrediagnóstico (o diagnóstico de casos de câncer que jamais causariam dano à pessoa), a ansiedade generalizada em relação a doenças e os custos muitas vezes contraprodutivos das intervenções de rastreamento (retirando recursos de outras atividades que trariam mais benefício para a população).

Embora ambos os lados da discussão tenham boas intenções, enquanto os defensores do uso amplo de rastreamentos enxergam principalmente o paciente individual (aquele que descobre e trata um câncer em fase inicial e é considerado um “sobrevivente” ou uma “vencedora”), quem defende a visão mais parcimoniosa pensa também em todas aquelas pessoas saudáveis que são expostas a exames desnecessários e potencialmente perigosos, além de considerar a sustentabilidade do próprio sistema de saúde. Ambos os lados enxergam a mesma coisa de maneiras diferentes. E isso não significa que algum deles esteja errado: o nome disso é “dualidade”.

A natureza dual do paciente

O termo dualidade pode ser compreendido como a qualidade daquilo que possui uma existência ou natureza dupla. A expressão encontra-se bastante difundida na área da física, em especial na mecânica quântica, como quando ela trata da chamada “dualidade partícula-onda”. Essa expressão significa que as entidades que formam o universo têm uma existência dupla, como partículas e ondas. O mais interessante é que essa condição de duplicidade dos elementos básicos da matéria, e mesmo a incerteza inerente à incapacidade de saber a exata posição de cada partícula a cada momento, não impedem que os físicos cheguem a conclusões bastante precisas em seus experimentos. Assim, se uma ciência exata como a física pode aceitar e lidar com a natureza dual da matéria, nada mais justo que uma ciência altamente inexata como a medicina também possa fazer algo semelhante.

Uma maneira de fazermos isso é compreendendo as pessoas que são atendidas e que recebem alguma intervenção médica como também expressando uma existência dupla. Nessa dualidade médica, o paciente é ao mesmo tempo um indivíduo (partícula) e parte da população (onda). E essa natureza dupla da condição do paciente pode até mesmo nos ajudar a compreender a maneira como uma mesma intervenção médica pode ser, ao mesmo tempo, benéfica e prejudicial.

Um exemplo disso são os citados rastreamentos para busca de câncer em pessoas saudáveis. Em nível individual, cada diagnóstico de câncer é importante e deve ser visto como se fosse uma ameaça real à vida daquela pessoa, sendo tratado adequadamente com vistas à cura do paciente. Não existe algo como o sobrediagnóstico em nível individual, pois ele só pode ser detectado e apenas se manifesta em populações de pacientes. Da mesma forma, pequenas variações da mortalidade causadas pela intervenção médica não podem ser detectadas em nível individual, pois o indivíduo só pode morrer ou continuar vivo. Trata-se aqui de um desfecho dicotômico e avesso a probabilidades.

Por outro lado, o fenômeno do sobrediagnóstico é facilmente detectável em nível populacional quando avaliamos grandes grupos de pacientes submetidos ou não a uma determinada intervenção como um rastreamento de câncer e notamos um aumento do número de casos da doença sem aumento no número de mortes ou de doença metastática. Neste caso, é possível que estejamos diagnosticando casos da doença que jamais se manifestariam clinicamente. A análise em nível populacional também consegue detectar qualquer mudança na taxa de mortalidade entre os dois grupos de pacientes, desde que ela exista e seja suficientemente relevante para ser detectada. E é nesse ponto que as coisas começam a ficar esquisitas, pois os desfechos individuais e populacionais costumam ser contrastantes em diversas formas de rastreamentos, o que é sugerido pelo fato de que os rastreamentos invariavelmente falham em demonstrar redução na mortalidade total das populações avaliadas.[1][2][3][4][5][6][7]

O desenlace da tragédia

A solução para o dilema talvez deva buscar inspiração na física e no conceito de dualidade da matéria, imaginando o paciente ao mesmo tempo como indivíduo (partícula) e população (onda). Isso nos permite aceitar com tranquilidade que uma mesma intervenção de rastreamento seja benéfica em nível individual e se mostre ineficaz ou até mesmo prejudicial em nível populacional. O que muda é a percepção da natureza do paciente e da intervenção proposta: em nível individual podemos fazer um diagnóstico precoce e ajudar o paciente, mas qualquer benefício em nível populacional deveria ser demonstrado como redução da mortalidade total em vez de mortalidade específica pela doença, a menos que se considere que morrer por infarto ou septicemia seja pior que morrer por câncer de mama ou de próstata.

O que não deveríamos fazer – e, infelizmente parece que invariavelmente fazemos – é justificar uma intervenção de saúde pública (rastreamentos universais e campanhas coloridas de prevenção do câncer) com base em benefícios individuais: intervenções de saúde pública deveriam demonstrar benefício em termos de saúde da população, como redução da mortalidade total ou redução de custos para o sistema de saúde. É por isso que eventuais campanhas de rastreamento populacional devem ser capitaneadas por profissionais envolvidos com a saúde pública, como epidemiologistas e sanitaristas, e nunca por profissionais que podem se beneficiar diretamente com as campanhas e com o aumento do número de diagnósticos da doença rastreada.[8][9]

Assim, a solução para a tragédia atual talvez seja esquecer as famigeradas campanhas multicoloridas e permitir que médicos e pacientes decidam caso a caso sobre a eventual realização de exames de rastreamento, considerando o perfil de risco de cada pessoa e suas preferências pessoais, assim como a experiência do profissional e o embasamento científico da decisão. Isso nada mais é do que a boa medicina exercida sem a influência de interesses comerciais que contaminam decisões que deveriam sempre ser individualizadas. Dentro de um consultório médico, as únicas vozes que deveriam ser ouvidas são a voz do médico e a voz do paciente. Fora disso – como disse Hamlet ao morrer – o resto é silêncio!


[1] https://www.slowmedicine.com.br/rastreamentos-salvam-vidas/

[2] https://www.jclinepi.com/article/S0895-4356(24)00181-1/fulltext#fig1

[3] https://www.bmj.com/content/352/bmj.h6080

[4] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25596211/

[5] https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2024.06.06.24308542v1

[6] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2808653

[7] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2808648

[8] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35385083/

[9] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2808645