O elogio da dúvida

Já dizia o cantautor uruguaio Jorge Drexler que “el mundo está como está por causa de las certezas”. E não é difícil perceber a verdade nessa bela canção. Pelo mundo afora, o apego a “duvidosas certezas” é a causa de inúmeros males. Seja no caso das muitas guerras atuais e de outros tantos desvarios de mandatários truculentos, o certo é que o mundo seria muito mais tranquilo se as pessoas abdicassem desse imperativo da certeza e gozassem da liberdade de viver – como Drexler – em um tipo de fronteira que separa a certeza da dúvida.

E duvidar não significa de modo algum ser ignorante. Pelo contrário, a dúvida nos coloca até mesmo em uma posição estratégica bastante vantajosa. Segundo a filósofa espanhola Victoria Camps, é exatamente essa atitude dubitativa que nos permitiria “antepor a dúvida à reação visceral”. Em outras palavras, aceitar a dúvida ou, pelo menos, reduzir nosso grau de certeza e o consequente ímpeto à ação, permite tempo para que reflitamos melhor, o que é especialmente importante em tempos de “infoxicação” virtual e polarização social. Segundo Camps, as incertezas da vida podem ser algumas vezes desconfortáveis, mas as certezas absolutas carregam consigo possibilidades desastrosas muito maiores sempre que se revelarem falsas.

Quem tem certeza absoluta costuma estar só ou, o que é ainda pior, na triste companhia de fanáticos que jamais duvidam de suas próprias crenças. Já quem aceita a dúvida costuma estar bem acompanhado ou, pelo menos, segue pela vida em consonância com um seleto grupo de pensadores que abraçaram a dúvida com tranquilidade. A única certeza de Sócrates era que ele não tinha certeza alguma. Montaigne vivia se questionando “O que sei eu?”, sem chegar a nenhuma conclusão definitiva. Já para Aristóteles, a virtude humana estaria em um meio-termo onde não se tem certeza de nada, exceto da necessidade de moderação nas coisas da vida diária. E, claro, ninguém ficou mais conhecido por não ter certezas do que Pirro de Élis, o mais famoso dos pensadores céticos.

Se a aceitação das incertezas faz parte da vida e, em especial, de uma vida mais sábia e virtuosa, nada mais natural que tal ensinamento também se aplique nas mais diversas atividades humanas. Na própria medicina, a aceitação das incertezas pode nos impedir de causar dano por agirmos de maneira intempestiva em relação a um paciente. Isso não significa simplesmente deixar de agir, já que a omissão pode, em determinadas circunstâncias, ser tão nefasta quanto a ação inadequada. Porém, a aceitação das incertezas nos permite – novamente como diria Camps – antepor a dúvida à nossa reação visceral de agir. O benefício claro disso é nos permitir um maior tempo para a reflexão e a tomada de decisões mais sábias.

Aceitar as incertezas médicas é também não ter pressa para impor rótulos diagnósticos a pessoas de carne e osso que buscam algum tipo de atenção para seus sofrimentos. É não ser o primeiro valente a prescrever um medicamento novo e, em grande medida, desconhecido com base em um único estudo clínico que mostra um eventual benefício que ainda não tenha sido devidamente replicado em outras pesquisas. É lembrar que, ainda que nossas calculadoras de risco possam ser úteis para fins de reflexão, a vida humana em nível individual é muito mais rica e complexa que um cálculo linear simples. É ainda reconhecer que, como médicos humanos, somos naturalmente falíveis e algumas vezes teremos que rever nossas condutas.

O maior benefício desse singelo elogio da incerteza para nós talvez seja a ideia de que podemos ser um pouco mais sábios, parcimoniosos e tolerantes ao abraçarmos a dúvida como método. E que, para tal, é fundamental aceitarmos nossas próprias limitações, a falibilidade de nossas previsões e as incertezas inerentes à vida. É nessa posição desconfortável para aqueles mais afoitos e arrogantes, mas estrategicamente vantajosa para aqueles outros mais prudentes e humildes, que podemos pensar e agir melhor. Pois é exatamente nessa fronteira imaginária de Drexler, que separa a sabedoria da estupidez, que podemos “aprender de viejo” as lições que o tempo e a vida nos tentam ensinar.