Reloaded: o renascimento da TRH

Quem observa a medicina com alguma atenção, já deve ter percebido que ela muitas vezes parece funcionar de maneira cíclica. Assim, coisas outrora vistas como excelentes para a saúde passam a ser proscritas devido a supostos riscos, enquanto outras tidas anteriormente como nocivas passam a ser promovidas como verdadeiras panaceias. É assim que acontece, por exemplo, com o consumo de ovos – os quais passam de tempos em tempos de vilões a superalimentos e vice-versa – e também com medicamentos que, vez ou outra, são ressuscitados. E a bola da vez parece ser a terapia de reposição hormonal (TRH) na menopausa.

Recentemente, os meios de comunicação foram inundados por manchetes que fazem referência à iniciativa do FDA de retirar os alertas presentes na bula dos medicamentos à base de hormônios femininos em relação aos riscos à saúde, como aumento de casos de câncer ou de doenças cardiovasculares.[1][2][3] De certa forma, a controvérsia em relação ao uso de reposição hormonal em mulheres saudáveis para reduzir o risco de condições crônicas associadas à menopausa pode ser resumida na comparação entre dois estudos.

O Nurse’s Health Study (NHS)[4] foi um estudo de coorte publicado em 1991 o qual acompanhou mulheres pós-menopáusicas e demonstrou uma redução no risco de problemas cardiovasculares naquelas que usavam a terapia de reposição com estrógenos. O estudo marcou uma época em que a hormonioterapia na menopausa era bastante comum e vista como uma intervenção altamente benéfica.

Isso continuou assim até a publicação, em 2002, dos dados da Women’s Health Initiative (WHI)[5], um estudo randomizado que foi interrompido prematuramente após os pesquisadores detectarem um aumento no risco de câncer e problemas cardiovasculares nas mulheres que usavam a hormonioterapia. Desde então houve uma redução expressiva nas prescrições de TRH no mundo todo. Além disso, o WHI passou a ser usado pelos defensores da Medicina Baseada em Evidências como exemplo da importância de a medicina se basear em estudos randomizados (em detrimento dos estudos observacionais) ao definir a eficácia e segurança de suas intervenções.

Nos últimos dias, uma nova reviravolta aconteceu na área da TRH com a retirada dos alertas de segurança das bulas desses medicamentos. O FDA publicou uma série de notas sobre o tema e deixou clara uma visão bastante entusiástica em relação à TRH, salientando seus vários benefícios, os quais incluiriam reduções no risco de doenças cardiovasculares, de fraturas osteoporóticas e até mesmo da doença de Alzheimer. E, para isso, cita estudos de qualidade variável, os quais incluem até mesmo dois estudos observacionais de gosto duvidoso que sugerem uma redução impressionante – quase inacreditável – de 64% na incidência de declínio cognitivo entre as usuárias de TRH.[6][7] Porém, mais do que discutir as evidências científicas que embasam a decisão do FDA, talvez seja mais interessante refletir sobre o porquê de essa reviravolta estar acontecendo agora e o que pode estar por trás dessas decisões.

Em primeiro lugar, existe evidentemente a questão política que, para desespero de muitos, sempre influenciou em maior ou menor grau as decisões relativas à ciência. Sob o comando do truculento Trump e de seu secretário de saúde não menos tosco, Robert Kennedy Jr., a ciência está sendo usada para interesses políticos. Se as coisas estavam ruins nas administrações anteriores, com o FDA funcionando muitas vezes como uma sucursal da indústria, elas conseguiram ficar ainda piores na administração atual. Assim, nada mais natural que lançar mão de estudos duvidosos ou mesmo de teorias conspiratórias para renovar antigas crenças e alcançar objetivos políticos, o que pode incluir o resgate da TRH ou a ressuscitação do fantasma do autismo causado por vacinas.

Em segundo lugar, é preciso perceber que o zeitgeist atual é bem diferente do que era na década de 1990 ou 2000. Por várias razões, que incluem desde o surgimento das narcísicas redes sociais até o culto da hiperprodutividade, as pessoas não se conformam mais em estarem apenas saudáveis. Elas querem bem mais do que isso: desejam parecer mais jovens, fortes e bonitas. A nossa época é a era da aparência e da performance muito mais que da saúde pura e simples. Assim, se a hipersaúde buscada hoje é sinônimo de aparência jovial, nada mais “natural” que usar hormônios até uma idade mais avançada.

Em terceiro lugar, poder-se-ia citar um deslize epistêmico bastante corriqueiro na ciência médica atual, mas que já era cometido desde o surgimento do primeiro ensaio clínico randomizado (ECR). Um ECR, por melhor que seja, não é nada mais que uma peça no quebra-cabeças da ciência ao tentar elucidar uma determinada questão clínica. Por si só, um ECR não prova nada, podendo apenas emprestar um tanto mais de peso a uma determinada hipótese científica. Quando um bom ECR corrobora o conhecimento anteriormente obtido com outros estudos (randomizados ou não), então ele aumenta – às vezes, bastante – a probabilidade de essa hipótese estar correta. Porém, um ECR nunca comprova ou afasta completamente uma hipótese. No caso específico da TRH, os resultados do estudo WHI estavam em total desacordo com o que se considerava correto na época. Assim, talvez a reação da medicina tenha sido exagerada ao reduzir vertiginosamente as prescrições de TRH com base nos achados de um único ECR.

Em quarto lugar, poder-se-ia lembrar da questão sexista que envolve todas as áreas da sociedade e, evidentemente, a medicina e a ciência. Está bastante claro que a ciência e a medicina ainda são – infelizmente – dominadas pelos homens e são eles que determinam o que será estudado e com que grau de agilidade. Isso talvez explique o porquê de conseguirmos desenvolver vacinas em tempo recorde, enquanto demoramos mais de 20 anos para revisitar essa importante questão da TRH em mulheres.

Por fim, existe ainda um evidente viés mercadológico na decisão do FDA. Em pleno apogeu de uma visão neoliberal de mundo, nada mais natural que liberar – e a mudança de posição do FDA causará exatamente isso – a venda de medicamentos que poderão ser usados e abusados com o apoio nefasto dos mercadores de curas milagrosas e da longevidade eterna em nossas famigeradas redes sociais. Seria uma enorme ingenuidade esperar que as pessoas prescrevam e utilizem a TRH a partir de agora com bom senso e moderação. Em uma sociedade polarizada e adoecida, o mais provável é que passemos de um extremo a outro do espectro, com recordes de vendas e possíveis consequências desagradáveis que talvez demorem outros tantos anos para serem detectadas.

Para aqueles que costumam usar de bom senso e moderação nas coisas da vida, pouco muda a prática médica com a decisão do FDA. As mulheres que realmente apresentam sintomas menopáusicos significativos já tinham desde sempre uma indicação de considerar o uso da TRH. Em todos os outros casos, a decisão sobre o uso sempre deveria ser feita de maneira compartilhada e com base no perfil de risco e nos valores e preferências de cada paciente. O problema é que, a partir de agora, teremos que lidar com uma enxurrada de desinformação que tentará convencer mulheres saudáveis e assintomáticas a usarem medicamentos que são na maioria das vezes desnecessários e cujo perfil de riscos está longe de ser negligenciável. Enfim, só nos resta torcer que essa história toda, com suas idas e vindas, tenha nos trazido alguma improvável sabedoria.


[1] https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/hhs-advances-womens-health-removes-misleading-fda-warnings-hormone-replacement-therapy

[2] https://www.hhs.gov/press-room/fact-sheet-fda-initiates-removal-of-black-box-warnings-from-menopausal-hormone-replacement-therapy-products.html

[3] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2841321

[4] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJM199109123251102

[5] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/195120

[6] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/15668595/

[7] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/622551